de ordinarice

A terceira aventura do mais excitável espião do mundo é imparável, atulhada de tralha pop. "Austin Powers em Membro Dourado" é para os que se esquecem dos preconceitos. Ordinário? Sim, mas o que há de libertário no humor também passa por aqui.

Houve um crítico americano que pôs assim a questão: se o primeiro filme da série Austin Powers era um "pastiche" do filme de espiões e o segundo um "pastiche" dos "pastiches" dos filmes de espiões, seria possível ao terceiro filme da série prolongar esse jogo aparentemente infinito?

A resposta, também aparentemente, é que sim, foi possível. "Austin Powers em Membro Dourado", de Jay Roach, talvez já não seja um filme, antes a completa desagregação do que é suposto ser um filme. A lógica do "pastiche" e da citação subvertida é tal que funciona como uma espécie de moinho centrífugo: só vale o que remete para fora do filme, para coisas que o espectador já viu, já conhece ou já sabe. No fundo, é daí que lhe vem o charme, eventualmente mais sedutor do que o dos dois primeiros episódios, dessa espécie de retorcida e muito "blasée" pós-modernidade, em que já nada está no lugar certo e tudo pode aparecer em qualquer lugar, e onde nem sequer é preciso que alguma coisa exista.

Aliás, deve ser por isso que "Austin Powers em Membro Dourado" começa por fingir ser um filme que... não existe: logo ao princípio, em vez do genérico deste filme, aparece o de um outro filme de Austin Powers, realizado por Steven Spielberg e interpretado por Tom Cruise e Gwyneth Paltrow... Sequência que é uma pequena apoteose do falso "film on film", e anuncia "Austin Powers em Membro Dourado" como celebração do postiço, do reciclado e do vazio, atulhado de tralha pop.

Evidentemente, não é para todos os gostos. Todos os filmes da série Austin Powers fizeram gala em não conter uma única piada de bom gosto. É tudo escatológico, ordinário e, no mínimo, politicamente muito incorrecto (normalmente diz-se que são as mulheres as mais maltratadas pelo mau gosto da série; mas esquecem-se dos anões e daquele inacreditável "clone" do Dr. Evil, o Mini-Me...).

A verdade é que o filme não baixa a guarda, não procura por um segundo que seja redimir-se da baixeza em que labora. Pelo contrário, adopta um ritmo de metralhadora, com piadas e "gags" a sucederem-se a um ritmo massacrante, numa catadupa em que tudo entronca com tudo, tudo se transforma noutra coisa e tudo se dilui.

Comecem agora a atirar pedras - o facto porém é que, muito objectivamente, não se vê um tal ritmo e uma tal (auto-)irrisão, uma tal selvajaria e uma tal ausência de pruridos morais desde que Irving Thalberg pegou nos irmãos Marx e os obrigou a pôr o pé no travão. Sem querer entrar em comparações de outro tipo, parece bastante plausível a hipótese de, se Groucho fosse vivo, ser um grande fã de Austin Powers.

atrás das máscaras. Se a lógica de Austin Powers tem qualquer coisa de marxista, já o seu protagonista, Mike Myers, parece oriundo de outra família. Myers, ainda mais do que nos outros filmes (a engrenagem é diabólica e imparável, já se disse), multiplica-se em personagens - os habituais Austin, Fat Bastard, Dr. Evil e, especialmente para esta sequela, o vilão holandês que tem as partes baixas transformadas em ouro - e Austin Powers propriamente dito é já só mais uma delas. Pode-se pensar (assim mesmo: pode-se pensar) numa escola que por acaso é mais britânica do que norte-americana (Myers é canadiano), a de actores como Alec Guinness (o homem das oito personagens em "Oito Vidas por Um Título" e de muitos disfarces noutros filmes) ou Peter Sellers (o homem das três personagens no "Dr. Strangelove" de Stanley Kubrick e de ainda mais disfarces noutros filmes do que Guinness). Austin Powers como um "one man show?"

Sim e não, porque - aliás, tal como sucedia com Guinness e Sellers - o actor tem tendência para desaparecer por detrás das suas máscaras; é sempre a personagem que se impõe (ou o boneco, mais propriamente dito no caso de "Austin Powers em Membro Dourado"), mais do que a exibição do virtuosismo. E, quando falamos de disfarces, falamos de disfarces: sem olhar ao genérico, um espectador distraído talvez não atribuísse a Myers todas as personagens que ele de facto interpreta.

Será preciso, portanto, encontrar todas estas cauções para se achar piada a Austin Powers? Não, basta esquecer os preconceitos. Nem sequer é um "guilty pleasure" - e o filme, com o seu humor de piscadelas de olho para intelectuais e gente "cool", faz o possível para que ninguém sinta culpa no prazer. De resto, não é por ser ordinária que uma piada deixa de poder ser elaborada (e, apesar de tudo, para se chegar a uma frase como "welcome to my submarine, it's long, hard and full of seamen" foi precisa alguma elaboração...), nem é por mimetizar gestos de gosto duvidoso que um "gag" visual deixa de poder funcionar (veja-se o jogo de sombras por detrás do biombo, quando Powers e Mini-Me vão ao médico...).

Com melhores ou piores resultados, passa por aqui um gesto dessacralizador, selvático e libertário que, desde sempre, andou de braço dado com o humor cinematográfico (não vale a pena enumerar outra vez referências, que a lista seria infindável e chegava ao som do autoclismo de Renoir). E, a meias com a sua descomplexada celebração da futilidade, essa é uma óptima razão para não se menosprezar "Austin Powers em Membro Dourado".

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