Bollywood Deluxe

O cinema indiano prossegue a sua invasão nos écrãs. Mas "Lagaan - Era Uma Vez na Índia" tem um modo muito especial de enlear o espectador. Entre o melodrama e as canções, é um filme deliciosamente diferente.

Um filme indiano com estreia "a sério" em Portugal, ainda por cima através de uma grande distribuidora? É raro, muito raro, mas é um mistério com explicação relativamente simples: "Lagaan - Era Uma Vez na Índia" foi nomeado para o Óscar de melhor filme estrangeiro, e conseguiu a proeza nada habitual, para o cinema indiano, de perfurar o mercado ocidental, mais propriamente o americano.

É um filme que vem com "cartaz" e, à sua maneira, com carta de recomendação. Não se trata, portanto, de um filme indiano "típico", do género daqueles que têm exibições semi-clandestinas no Cine 222, em Lisboa. Mas, num paradoxo curioso, quer parecê-lo, ou quer mesmo sê-lo, em versão refinada e de acabamento luxuoso. Diz a documentação fornecida nas notas de produção que é o mais caro filme indiano de sempre, e "um dos tecnicamente mais ambiciosos na história de Bollywood". Entre a pré-produção e a estreia passaram cerca de quatro anos, o que também diz alguma coisa sobre o seu estatuto especial numa indústria onde os filmes se fazem normalmente em menos de um fósforo. De certa forma, "Lagaan" é, ele próprio, uma espécie de cartão de visita de Bollywood (a maior indústria cinematográfica do mundo, convém recordar), como se fosse para mostrar, a Ocidente, aquilo de que o cinema indiano é capaz - inclusive, ou sobretudo, do ponto de vista técnico: do genérico ao último plano, tudo a esse nível é orgulhosa e irrepreensivelmente exibido.

É claro que se pode dizer que toda esta dimensão laboriosamente pré-fabricada do projecto entra um bocadinho em colisão com a "tipicidade" pretendida. Se essa tipicidade, em substância, está no filme (pelo menos enquanto recolha de uma série de traços e situações características do cinema popular indiano), ela aparece porventura demasiado exposta, demasiado "limpa", como se se tratasse de evitar uma excessiva "indianidade" (perdoe-se a expressão, à falta de melhor termo).

Não é dizer que "Lagaan" não é "genuinamente" indiano (seja lá o que isso quer dizer, seja qual for a obrigatoriedade de o ser), mas que se trata de um filme que calcula de maneira muito ponderada, e às vezes muito mitigada, a aplicação dos códigos dessa genuinidade. Aliás, o facto de ser de um filme de época (ambientado em 1893) e de a narrativa pôr em cena conflitos de raiz colonial, até poderá ser parte integrante dessa estratégia, visto que se trata de um território não totalmente desconhecido, e até bastante reconhecível (via séries da BBC ou filmes como "Gandhi"), para o espectador ocidental.

Por outras palavras, e para acabar de vez com esta questão, "Lagaan" é um filme que amortece consideravelmente as marcas da sua origem, e tenta não se tornar demasiado impermeável ao olhar do espectador comum ocidental. Entre a "tipicidade" de "Lagaan" e, por exemplo, a de um filme de Mani Ratnam (um dos mais populares realizadores indianos contemporâneos, cultor de uma estética que concilia o melodrama tradicional com a influência dos telediscos e da MTV), há uma diferença que é, medindo as palavras, brutal. Perante um filme de Ratnam, a maioria dos espectadores ocidentais teria uma indigestão de "kitsch" que tornaria a empatia numa questão muito complicada.

Um filme que "cresce em nós"

É importante fazer essa distinção, não para menorizar "Lagaan" diante da suposta "real thing", mas para cumprir plenamente a sua função de cartão de visita: se depois de o ver, o espectador aumentar a sua curiosidade pelo cinema popular indiano (excluindo daqui os grandes mestres autores, como Satyajit Ray ou Ritwik Ghatak), o filme terá cumprido aquela que não é, seguramente, a menos relevante das suas missões. A outra missão, que tem a ver com o prazer imediato de se ir ao cinema ver um filme, "Lagaan" cumpre-a razoavelmente bem. É verdade que quando começa, e durante algumas sequências, parece demasiado preso a uma lógica um tanto académica, para não dizer televisiva. Mas com o tempo (há muito tempo, em "Lagaan", e o tempo do cinema indiano não se mede pelos mesmos critérios do ocidental) essa impressão desfaz-se ligeiramente e o que sobressai é uma terrível eficácia narrativa. Uma eficácia que não tem nada a ver com os conceitos habituais de "economia narrativa" (que, como o tempo, também tem outras medidas no cinema indiano), mas com um modo muito especial de ir enleando o espectador - é um filme que "cresce em nós".

De resto, que outro filme, fosse ele feito em que sítio fosse, seria capaz de fazer coincidir o seu clímax dramático com um jogo de críquete (é a aposta que preside à narrativa: se os camponeses indianos ganharem o jogo aos ingleses, ficam três anos sem pagarem o "lagaan", ou seja, o imposto; caso percam, pagam o imposto a triplicar), fazê-lo durar uma hora, e manter os espectadores agarrados à cadeira enquanto os obriga a aprender a cem à hora as regras de um desporto que só entusiasma ingleses, indianos, e uns outros quantos membros da Commonwealth?

Mas há também, claro, o melodrama e as canções. Uma coisa e outra são inseparáveis, e são os outros pontos fortes do filme. O melodrama é fornecido por um triângulo (o herói Bhuvan, a prometida dele, e uma inglesa, irmã do mau da fita, governador da província), suscita um dos melhores momentos musicais do filme (aquele com a inglesa de vestido vermelho - só um filme indiano teria hoje coragem de colar assim o vermelho à representação do desejo, sem medo dos "clichés"), e resolve-se por dissipação, evitando um grande choque emocional definitivo.

As canções, por seu turno, surgem da maneira mais tradicional: tudo pára, para que sejam ouvidas (e vistas as coreografias), sem que isso signifique uma paralisação da narrativa que nesses momentos, subtilmente, ou avança ou se clarifica. Como seria de esperar, aliás, as sequências das canções são os momentos em que o filme mais se liberta, e talvez a acima referida impressão de academismo se comece a desvanecer, precisamente, a partir da primeira sequência cantada.

É preciso mais para dizer que, mesmo tendo em linha de conta todos os seus limites, "Lagaan" é uma proposta irrecusável e deliciosamente "diferente"?

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