Isto Não É Um "Film Noir"

Billy Wilder, Hitchcock, Orson Welles? Multiplicam-se pistas e estilhaços para nos encadear. Entre aquilo que é e aquilo que mostra, "A Mulher Fatal" revela-se o filme de um genial falsário (mais do que um imitador). "Film noir"?

Brian de Palma é um dos cineastas que, na Hollywood dos anos 70, melhor cultivou a técnica do "pastiche", criando, por exemplo "falsos Hichcocks" que revestiam quase sempre o fulgor de originais desfocados e refractados. Filmes como "Carrie", reformulando o terror psicológico, ou "Vestida para Matar", citando e variando sobre "Psico", estão hoje melhores do que quando foram estreados.

A partir do conjunto, percebemos que não se tratava de um "imitador", mas de um genial "falsário", inscrito na lógica dos pós-modernismos e jogando com os restos do cinema clássico, bem como com a sua memória mítica. Mesmo nos seus filmes mais fracos, como "A Fogueira das Vaidades" (1990) ou "Raising Cain" (1992), havia o arrojo de descontruir, de segmentar as formas, de se erguer sobre ruínas de passados esplendores com a desfaçatez de quem transforma o pechisbeque em ouro de lei, ou o ouro em pechisbeque, tanto faz.

Todo este palavreado é fundamental para entender a última provocação "depalmiana", depois de pacíficas incursões pela pirotecnia de origem televisiva em "Missão Impossível" (1996), ou pela ficção científica petrificada de "Missão a Marte" (2000): como iconoclasta que sempre foi, Brian de Palma pega nos restos simbólicos do "film noir", escaca-os e reconstrói-os a seu bel-prazer.

Quando acaba o genérico de "A Mulher Fatal", abre-se para a representação do mundo como um palco e o uso da cidade de Paris é triplamente irónico: remete para a terminologia de género, que a crítica francesa cunhou, não só o "femme fatale" do título, mas também o próprio conceito de "film noir"; assume os lugares-comuns fílmicos da capital francesa, de que o Gene Kelly de "Um Americano em Paris" parece ser o estereótipo confessado; constrói-se um outro "pastiche", o de filme americano "exilado", de que "Frenético" (mais um Hitchcock, "in absentia") de Polanski poderia ser a ponta do icebergue.

Como matriz confessa aparece o filme de Billy Wilder, "Pagos a Dobrar" e a "persona" forte" de Barbara Stanwyck, na cena famosa em que encarna o arquétipo da "femme fatale". O que o argumento faz é reconstruir em vitral uma espécie de narrativa esfacelada, não uma história, mas a abstracção arquetípica de um género.

encadeamento.

Depois de um golpe bem sucedido, com uma cena de sedução lésbica, uma mulher (Rebecca Romijn-Stamos) rouba famosos diamantes, muda de país e de personalidade, mas ao regressar a Paris vê-se exposta e usa o fotógrafo que a expôs (Antonio Banderas) para arquitectar um plano de chantagear o próprio marido, Embaixador dos Estados Unidos da América.

No entanto (e não vamos contar a reviravolta...) a história reescreve-se e os estilhaços voltam a reunir-se, como se se refizesse o final do verdadeiro referente obsessivo e silencioso deste mortífero jogo cinéfilo, "A Dama de Xangai" de Orson Welles, cujo estilo visual De Palma mimetiza constantemente. Os espelhos partidos retomam o seu lugar e o caleidoscópio transforma-se sobretudo num "trompe l'oeil", outra designação francesa para nomear o efeito enganador do virtual que se sobrepõe a todas as hipóteses de real.

Numa narrativa onírica e surreal, temos acesso a uma história e ao seu duplo: há ecos de "Suprema Decisão/ Woman in the Window" de Fritz Lang; há remissões para as heroínas fortes dos "film noirs" da década de 40, da Stanwyck a Lizabeth Scott.

Existem, porém outras rimas mais espúrias, com o uso da fotografia como indício, a lembrar o Michelangelo Antonioni de "Blow Up", com a duplicação da história, como em "Regresso ao Futuro", de Robert Zemeckis, ou até já que estamos numa isotopia francófila, com o Alain Resnais de "Smoking/ No Smoking".

Mais uma vez o que se mostra no prólogo é outro cinema francês, o de Régis Wargnier, numa simulada cerimónia de apresentação numa edição do Festival de Cannes, realmente filmada em Cannes com Wargnier e Sandrine Bonnaire. Aquele filme existe, aquelas personagens são verosímeis, mas ficcionais, o real surge como fundo para o surreal, o cinema como arte do virtual é instrumentalizado para criar o efeito de real, que tão bem forja. Tudo é e não é aparente.

E se o fotógrafo, composto por Banderas, num divertido papel de "voyeur" (todo o cinema de Brian de Palma gira à volta do "voyeurismo") desmascarado e exposto na sua vulnerabilidade, evoca "Blow Up", de Antonioni, levanta óbvias rimas internas na obra do próprio realizador com "Blow Out/ Explosão", em que o som gravado substituía a imagem fotográfica.

Aqui regressa-se à origem visual e "A Mulher Fatal" procura um efeito de encandeamento, semelhante ao que, no interior do filme, cega e condutor do camião, levando à resolução de uma fracções (seria sempre preferível estilhaços) de narrativa.

No final, não há uma história, mas múltiplas pistas que por vezes se anulam umas às outras, poderíamos mesmo afirmar que se exibiu à nossa frente o suprassumo das características de um género, o sacrossanto "film noir", tendente mais a rasurar do que a ilustrar. Não se trata, sobretudo, de uma qualquer tentativa para ressuscitar um género historicamente datado, como o foram "Chinatown", de 1974 (de novo Polanski vem à liça e De Palma é uma espécie de anti-Polanski), "Body Heat/ Noites Escaldantes" (1981) de Lawrence Kasdan, ou "Instinto Fatal" (1992) de Paul Verhoeven, a cuja protagonista, Sharon Stone, Rebecca Romijn-Stamos foi buscar parte do seu "look" mais moderno, cruzando-a com Tippi Hedren ("Os Pássaros") e com a arquetípica heroína hitchcockiana. "Femme Fatale" constrói a personagem central do nada, dando-lhe vida, mas mata qualquer hipótese de filme negro. Por outro lado, o facto de recusar como muitos outros "pastiches" a evidência do original - como aconteceria se o filme tivesse sido filmado a preto-e-branco, como o realizador chegou a pensar, ou se seguisse uma estrutura formal muito codificada de plano americano dominante em campo/contacampo -, confere ao filme uma contraditaditória liberdade de ser e não o que é e o que mostra.

E lembramo-nos do famoso quadro do pintor surrealista belga, René Magritte, que exibe um bem reconhecível cachimbo, apondo-lhe o sintomático título de "Ceci n'est pas une pipe"/ "Isto não é um cachimbo".

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