Faltou Esticar a Corda

O percurso de Barbet Schroeder é singular. Não se encontra mais alguém que, como ele, tenha estado no coração da "nouvelle vague" (através da Les Films du Losange, foi produtor de Eric Rohmer, e foi actor para Godard ou Rivette) e se encontre hoje, 40 anos depois, no coração da indústria americana.

O trajecto é ímpar, tanto mais que o grosso da sua obra enquanto realizador foi feito já na América. O mais curioso é que Schroeder acabou por concretizar (nas circunstâncias em que tal concretização era possível) o sonho semi-confessado de Godard ou Truffaut: serem, ou terem sido, realizadores em Hollywood (e em alturas diferentes tanto um como outro estiveram na iminência de dirigir projectos americanos). A Hollywood de hoje não é a dos anos 30 ou 40, mas não será tresler muito dizer que o modelo mítico (ou mitificado) do sistema de estúdios desses tempos, e sobretudo o papel do realizador dentro desse modelo, acabou por ser revivido por Schroeder: ser um artesão parece o seu objectivo, e consegue-o com relativa felicidade, sejam os filmes melhores ou piores.

A maior excepção a esta lógica, desde que Schroeder se fixou no cinema americano, talvez tenha sido o anterior "A Virgem dos Matadores", o seu filme mais "off"-Hollywood (também um dos menos interessantes). Com "Crimes Calculados" temo-lo de volta ao "mainstream", tão "mainstream" que a vedeta até é Sandra Bullock. É um dos problemas do filme, mas já lá vamos.

Antes dos problemas "Crimes Calculados" arranca com alguma força: um "plongée" absolutamente vertical para mostrar dois miúdos a jogar à roleta russa, depois outros dois miúdos num décor que tanto lembra as torres de "Vertigo" como os sinos à beira do abismo de Michael Powell ("Quando os sinos dobram"), conversas estranhas e nietzscheanas, personagens cuja articulação não é perceptível, depois um assassínio e um cadáver. Aos dez minutos de filme ainda não temos a certeza do que vai ser o filme nem do que vai estar em causa e isso é bom.

Expliquemos um pouco: o segundo par de miúdos, que vai ser protagonista do filme, é descendente da dupla de estudantes que em "A Corda", de Hitchcock cometia um assassínio apenas para manifestar a sua superioridade (moral inclusive) não tanto sobre a vítima, mas sobre a humanidade - o objectivo é o crime perfeito, manifestação suprema de uma inteligência superior. "Mutatis mutandis" os rapazes do filme de Schroeder (Ryan Gosling e Michael Pitt, óptimos, não ficam a perder muito para o John Dall e o Farley Granger de Hitchcock) fazem a mesma coisa com os mesmos fundamentos, deliciando-se com as armadilhas e as falsas pistas deixadas à investigação policial. No filme de Hitchcock saltava-lhes ao caminho James Stewart; aqui é a vez de Sandra Bullock. E é por aí que o filme vai ruir.

Não porque Bullock seja pior actriz ou menos carismática do que Stewart (é-o, mas não é essa a questão). Stewart, no filme de Hitchcock, era tudo menos uma figura reconfortante; atirava-se ao jogo dos alunos com a mesma implacabilidade deles, o que o movia era também uma demonstração de superioridade (da sua), e era uma personagem tão sinistra como a dos criminosos.

Bullock, aqui, é o contrário disso, cheia de biografia e psicologia, em recuperação de um trauma relacionado com a tal primeira cena da roleta russa. Exigência do "star system" ou só de Bullock (que foi produtora do filme), a sua personagem não tem zonas de sombra, assim como o filme é politicamente correcto e a milhas da ambiguidade de "A Corda". Bullock é um empecilho no que incialmente parecia ser a lógica narrativa de "Crimes Calculados", que deixa no espectador a frustração de pressentir por ali algures um bom filme por potenciar - pelo menos, por levar às derradeiras consequências.

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