Ondas de Paixão

Pedro Almodóvar instalou-se, parece que definitivamente, no melodrama.

Aquela que sempre foi a grande tentação do seu cinema, e que permaneceu sempre como uma espécie de "face escondida" (algumas vezes mais abafada do que escondida, como se o próprio tivesse receio de a revelar) pela parafernália "camp" e pelos "almodovarianismos", não tem agora nada por cima e está completamente exposta. O melodrama, ou melhor, o desejo de melodrama, pode agora (numa curva que terá começado em "A Flor do Meu Segredo") ser assumido e explorado em toda a plenitude. Nunca como aqui: se os últimos filmes acentuavam a tendência, "Fala com Ela" é, para já, a sua expressão mais acabada.

Como sabe quem já viu filmes de John Stahl ou Douglas Sirk (onde Almodóvar educou o seu gosto pelo género), o melodrama será excessivo e febril ou não será. Ou se joga no limite da racionalidade e da verosimilhança, preferencialmente para lá dele, ou então nem vale a pena. Nesse aspecto, Almodóvar tenta aqui ir mais longe do que fora em "Tudo Sobre a Minha Mãe" (que no entanto era um melhor filme), mas com menos. Em vez da enorme teia emocional e da profusão de personagens e cruzamentos biográficos do filme precedente, "Fala com Ela" deposita-se numa única situação essencial: há uma rapariga, Alicia, em coma e um enfermeiro, Benigno, que cuida dela, "fala com ela" e a ama desmedidamente; há também uma rima, com outro casal em situação semelhante (a mulher, uma toureira, está em coma, o homem, Marco, acompanha-a com menos zelo do que Benigno e não "fala com ela"), que acaba por servir, sobretudo, para trazer Marco para dentro da história de Benigno e Alicia. Com esta história do amor de um homem por uma mulher em coma profundo, levada ao extremo (e o extremo aqui não dispensa o toque miraculoso do final), o território é exemplarmente melodramático, no que ao excesso e à febre diz respeito.

Abra-se um parêntesis para sublinhar o "exemplarmente". A reserva maior que se pode ter em relação a "Fala com Ela" passa por ser possível notar a vontade dessa exemplaridade - como se Almodóvar não quisesse simplesmente filmar um melodrama mas "o melodrama", deixar bem claro que o filme não é apenas feito das emoções que nele existem mas também, ou sobretudo, da consciência (ou da "sobreconsciência", como diriam os anglo-saxónicos) da sua tradução formal. E é curioso, mas provavelmente significativo, que a história tenha vários pontos de contacto com outra tentativa europeia recente (e "autorística") de erguer um olhar assim, total, sobre "o melodrama": "Ondas de Paixão", de Lars von Trier. Em parte, é por isso que a perfeição da construção narrativa e formal de "Fala com Ela" tem um leve travo a plástico, que no fundo define tudo o que irremediavelmente o separa da raiz cinematográfica clássica do melodrama, e dos filmes (os de Sirk e Stahl) que ele já não pode ser - e possivelmente a insistência (como em Von Trier) numa hipótese "visível" de transcendências (os "milagres", sejam eles o que forem) é uma forma de tentar compensar essa distância. Mas que também tem a ver com o perfil deste "novo Almodóvar", agora "maduro" e "adulto", e talvez demasiado desejoso de assim se mostrar: o facto de, em vez de espectáculos de "travestis" e canções de rockers espanhóis xungas, haver bailados de Pina Bausch e recitais de Caetano Veloso será um sinal de "maturidade" ou apenas da vontade de Almodóvar de ser levado a sério? (A pergunta não é retórica e não implica saudades dos espectáculos de "travestis" ou dos rockers espanhóis xungas).

Dito isto, o aspecto mais estimulante tem a ver com o modo como Almodóvar lida com uma questão essencial de qualquer melodrama passional - a carne e a sua sublimação. Se o clímax dramático do filme está já para além dessa questão (assim como no de Von Trier apareciam os sinos no céu), o que é verdadeiramente interessante é o modo como se chega aí, a maneira como se "atravessa" a carne. Aí, o filme assenta em algo que é um enigma, tanto para os espectadores como para as outras personagens: qual é a verdadeira natureza da devoção de Benigno por Alicia? Até que ponto é ditada por puro platonismo, e até que ponto é que aquele corpo feminino permanente inanimado constitui para Benigno (que lhe mexe e toca diariamente) um real objecto de desejo? Almodóvar passa o filme a baralhar as pistas, escolhendo fazer de Benigno um homem aparentemente assexuado (sobre cuja identidade sexual todas as outras personagens têm dúvidas), e escondendo-nos o rosto dele quase sempre que toca no corpo de Alicia (filma apenas as mãos, deixando indefinido o ponto em que acaba o profissionalismo e se começa a insinuar uma erotização). O plano mais significativo é quando o pai de Alicia visita o quarto e, de um ponto de vista subjectivo (quase correspondente ao da câmara e ao do espectador), fica uns segundos a olhar para Benigno a massajar as pernas de Alicia; a pergunta que ele se põe, a mesma que o espectador se põe, é: "Que toque é aquele?"

O filme acabará por responder, de forma a precipitar o desenlace. E responde de maneira sublimada, com a brilhante ideia do "filme no filme" a funcionar como metáfora do que não vemos, de forma a poder filmar até ao fim Benigno como um anjo caído em desgraça quando já todos sabemos que o que o desgraçou foi ser um homem - devolvendo a complexidade à personagem, ou seja, definindo-lhe um corpo.

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