A Longa Marcha Individual

Nos anos 80, a China abria-se à nova ordem económica, e num sucesso rock ouvia-se: "Estamos à espera, os nossos corações estão á espera, á espera para sempre...". Hoje, mais de dez anos depois, um cineasta, Jia Zhang-ke, lembrou-se dessa canção e convocou as suas memórias em "Plataforma". É um balanço dos ganhos e perdas da aceleração da nova China, através da história de uma trupe teatral que voga ao sabor da liberalização. "A perda do ideal revolucionário deu lugar à idade do consumo", diz o realizador. O grupo cedeu lugar ao indivíduo. A excitação temperou-se com amargura. A fuga em frente (atrás de dinheiro ou das drogas) é a única saída. A propósito de "Plataforma", aqui fica o retrato de um país que já não encaixa nos nossos preconceitos ocidentais. Tudo - ou quase tudo - é permitido. "Servir o Povo" passou a ser o nome de um bar. São estas contradições que a nova geração de cineastas se apressa a registar. Mesmo que ilegalmente. "Estamos à espera, os nossos corações estão á espera, á espera para sempre...".Jia Zhang-ke, nascido em 1970, cresceu na década em que todos os seis meses começou a haver uma canção pop nos topes da China. Ficaram-lhe várias canções na memória; canções de amor, "que mostravam que afinal tínhamos o direito de amar", mas sobretudo muitos versos sobre esperanças e expectativas. Numa delas em particular, que foi um hit rock, cantava-se assim: "Estamos à espera, os nossos corações estão á espera, á espera para sempre...".

Jia Zhang-ke lembra-se de mais coisas dessa China a sair da agonia do maoismo com a abertura lançada por Deng Xiaoping: foi nesses anos, entre 1979 e 1989, que "O Capital" e os escritos de Mao Zedong foram substituídos por "O Amante de Lady Chatterley", por Freud ou por "A Dama das Camélias" (este era distribuído com um guia de leitura para travar excessivos delírios ou para reafirmar que a história de uma prostituta em Paris só podia ser lida como a narrativa exemplar da decadência capitalista).

No lugar do "nós" nas canções começou a aparecer o "eu". Aos poucos, chegaram também filmes americanos, "soaps" japonesas ou artes marciais de Hong Kong. Os cigarros apareceram nas mãos das raparigas (que deixaram de ter de relatar a vida privada ao Partido) e a versão chinesa de "Gengis Khan", um sucesso do Festival da Eurovisão, impôs-se ao som roufenho dos altifalantes que noticiavam condenações ou reabilitações.

Nas pequenas aldeias, as noites deixaram de abraçar o eco longínquo do silvo dos combóios. Os corações passaram a encher-se de excitação com o ruído do "breakdance".

Foi assim, com a excitação no coração, que o jovem Jia Zhang-ke partiu para Beijing, para a Academia de Cinema, onde viria a formar a primeira unidade de produção cinematográfica na China. Depois da estreia na longa-metragem, com um aclamado (no ocidente) "Pickpocket"/ "Xiao Wu" (1997), vieram-lhe à memória os versos da canção e o realizador sentiu a urgência de libertar essas recordações. "Estamos à espera, os nossos corações estão á espera, à espera para sempre...". Chamava-se "Platform"/ "Plataforma" essa canção. Jia Zhang-ke notou: a plataforma de um combóio "tanto pode ser um ponto de partida como de fim". É que a melancolia já lhe pesava no momento em que se atirou ao projecto de realizar a sua segunda longa-metragem, "Plataforma".

ao sabor do vento. "Só agora me apercebo como as coisas mudaram, visto que, durante todos estes anos, o mundo que eu amava se mudava mais lentamente, mais imperceptivelmente. Tinha apenas uma vaga consciência disso", afirmou Jia Zhang-ke. Em "Plataforma" está materializado, de forma poderosa, esse sentimento: de repente, um presente imutável desaparece de forma silenciosa, deixando o rasto de uma tristeza vacilante.

"Plataforma" conta a história de dez anos na vida de uma trupe cultural ambulante que voga ao sabor dos ventos da liberalização da China. O cenário é Fenyang, uma aldeia a noroeste do país, a duas horas de uma das margens do Rio Amarelo. Em 1979, a Revolução Cultural já tinha acabado, mas ainda era possível louvar Mao. E assim, no primeiro plano do filme, em Fenyang ainda se canta "Os Comboios que vão para Shaoshan", em homenagem á cidade natal do Grande Timoneiro.

Depois, os vultos na paisagem começam a vestir calças à boca de sino, e começam a aparecer os primeiros aparelhos de televisão. Quando nos damos conta (os espectadores, ao mesmo tempo que as personagens, e esse um dos aspectos mais poderosos do filme), toda uma aldeia mudou: pequenos sinais, uma indicação de trânsito que desapareceu, um fluxo de tráfego que aumentou, um penteado. É como se, em vez de ficção, "Plataforma" fosse uma super-produção documental que resultasse de anos e anos de labor e observação de uma cidade para absorver o seu movimento, as neves e a Primavera (na verdade, Jia Zhang-ke filmou durante um ano, para captar a mudança das estações, e dirigir cerca de 100 pessoas, entre actores, quase todos eles não profissionais, e figurantes; e só o facto de estar a filmar numa zona longínqua dos centros institucionais o livrou de ser incomodado pelas autoridades).

"Plataforma" é um impressionante edifício cinematográfico: silencioso, sereno, de planos quase sempre estáticos, onde uma ligeira (e imperceptível) vacilação da câmara, para mostrar uma entrada em campo - um transistor que alguém trouxe do exterior, por exemplo - assinala uma aceleração, um outro tempo a intervir que vai ter consequências irreversíveis (mas isso só sentiremos depois) para as personagens.

No início, só as vemos à distância, diluídas no grupo (mas parece que as conhecemos todas) e numa espécie de indefinição de juventude. A braços com pequenas grandes interdições (fumar; contar a vida privada às autoridades), pequenas grandes revoluções (na roupa).

Quando, perto do final, a sua actividade cultural está reduzida aos movimentos partidos do "breakdance", a trupe está finalmente entregue à iniciativa privada. "A perda do ideal revolucionário deu lugar à idade do consumo", como diz Jia Zhang-ke. Traduzido: desaparecido o grupo, que a todos unia (e sufocava), afirma-se outra identidade, mais nova, mais solitária, o indivíduo. E ninguém, em "Plataforma", sabe o que fazer com ela (e deixamos de conseguir penetrar a opacidade de cada um). As relações pessoais esboroaram-se, as famílias desfizeram-se e os planos começam a procurar o vazio (com a mesma surda implacabilidade de "O Papagaio de Papel Azul", filme, de 1994, de um cineasta da "5ª geração", Tiang Zhaungzhuang, cuja montagem ia aniquilando, por assim dizer, as personagens desse seu relato de catarse sobre a Revolução Cultural).

Em "Plataforma", tudo se suspense, no final, perante a imensidão do novo longo salto em frente.

"Os chineses pensam frequentemente que a nostalgia é típica das pessoas mais velhas, mas acho que na China moderna muitos jovens experimentam este sentimento relativamente ás lembranças da sua vida em família, pois a maior parte deixou a aldeia e partiu para a grande cidade. Parece um país estrangeiro e eles não sabem qual será o seu futuro". Como é que dizia a canção? "Estamos à espera, os nossos corações estão á espera, á espera para sempre...".

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