Astérix Encontrou Os Monty Python

É um casamento feliz entre o humor da BD de Goscinny e o "non sense" dos Monty Python. Em ambiente de "peplum" delirante, "Missão: Cleópatra" recupera Astérix para o cinema - e a proeza ainda maior de revelar um realizador que é capaz de fazer humor, Alain Chabat.

Bom, ei-los de volta, Astérix e Obélix em versão cinema. Quem teve a infelicidade de ver a primeira adaptação cinematográfica (em "acção real") das aventuras dos heróis criados por Goscinny e Uderzo, dirigida há um par de anos por Claude Zidi, tem boas razões para temer o pior. "Astérix e Obélix Contra César" era um objecto de uma indigência a toda a prova, cabotino e boçal, sem ponta de graça, e não tinha nada, mas mesmo nada, a ver com o humor subtil e farsante dos álbuns de BD em que se baseava. Nada disso impediu que o filme de Zidi fosse um colossal sucesso de bilheteira, tornando mais ou menos previsível a continuação da exploração do filão Astérix, mesmo que pela amostra se ficasse com a sensação de que o universo e as características da série de BD eram inadaptáveis ao cinema, e que qualquer nova tentativa redundaria novamente num enorme fiasco.

Impossível, portanto, partir para o visionamento de "Astérix e Obélix - Missão: Cleópatra" sem levar o pé atrás, até porque, à partida, os intervenientes eram mais ou menos os mesmos: o produtor Claude Berri (que para este filme disponibilizou um orçamento-recorde no cinema francês), os actores Christian Clavier e Gérard Depardieu a fazerem respectivamente de Astérix e Obélix - e também eles eram culpados, muito culpados, pela boçalidade do primeiro filme. Havia um realizador, também autor do argumento, diferente: Alain Chabat. O que por si só não queria dizer muito, pois de Chabat pouco ou nada vimos ou sabemos, para além do facto de ser uma figura de algum culto em França por via da sua participação numa trupe humorística tipo Monty Python, os "Nuls". Como actor, vimo-lo recentemente em "O Gosto dos Outros", de Agnès Jaoui (era o motorista de Castella), porventura o papel mais saliente da sua carreira cinematográfica, que incluía ainda a realização de uma longa-metragem e de dois filmes para televisão, para além da colaboração em vários argumentos.

Vê-se, pelo filme, que a vantagem de "Missão: Cleópatra" sobre o filme precedente não é só não ter Claude Zidi ao leme: é mesmo ter Alain Chabat. "Missão: Cleópatra" é sobretudo um exemplo feliz e inteligente de conciliação de dois meios, o cinema e a BD, raramente conciliáveis da melhor maneira. Uma boa adaptação, antes do mais. E aí, a acreditar no que Chabat conta sobre a génese do filme, o mérito será essencialmente dele.

Claude Berri, o produtor, deu-lhe carta branca para escolher o álbum de Astérix que queria adaptar e para o adaptar como quisesse. O resultado é feliz: o filme é divertido, porque tem humor, compreende bem o humor de Goscinny e Uderzo, não o trai, é comedido naquilo que acrescenta e que subtrai ao original, a ponto de denotar uma pose de alguma modéstia - como se "Missão: Cleópatra" fosse acima de tudo norteado pela preocupação de chegar a uma "leitura" cinematográfica, a melhor que fosse possível, da BD original.

Mas para o êxito da adaptação também contribui a não repetição dos erros mais clamorosos de "Astérix e Obélix Contra César". Em primeiro lugar, o facto de "Missão: Cleópatra" seguir fielmente o álbum quase homónimo ("Astérix e Cleópatra"), preservando-lhe a narrativa e a maior parte dos "gags". Ou seja, baseia-se num valor narrativo e humorístico seguro, sem procurar inventar novas peripécias - e tudo o que, no filme de Zidi, era "inventado" era invariavelmente lamentável.

Depois, Chabat percebeu muito bem que as personagens de Astérix e Obélix têm muito poucas hipóteses de subsistir com a mesma eficácia quando transpostas para cinema. E portanto, remeteu-as para uma muito maior discrição - quase não se dá por elas, como se se reduzissem a coadjuvantes, ficando o primeiro plano para a galeria de personagens que no álbum eram secundárias: os arquitectos Numeróbis (Jamel Debbouze, óptimo) e Amonbófis, Cleópatra, o centurião Romano, Júlio César (interpretado com desprendimento pelo próprio Chabat), etc.

Depois, Chabat tem o sentido do "gag", patente quer no que preserva quer no que acrescenta. Com alguma surpresa, a maior parte dos "gags" já conhecidos (e directamente importados do álbum) funciona bem, com Chabat a contornar a maior dificuldade (a "instantaneidade" e ausência de tempo da BD) por uma eficaz gestão dos tempos e da montagem. E o que acrescenta enriquece, quer seja o número musical (ao som de James Brown) que se segue ao primeiro fornecimento de poção mágica aos trabalhadores egípcios, ou a sequência de desenhos animados (muito parecida com a que Tim Burton concebeu em "Pee Wee's Big Adventure") quando os gauleses ficam presos dentro da pirâmide, ou ainda a série de pequenos "gags" de pormenor, como aquele que intromete um grupo de turistas japoneses numa excursão para ver a esfinge.

"Missão: Cleópatra" é assim um casamento feliz entre o humor francês de Goscinny e o estilo mais seco e "non sense" dos britânicos Monty Python, por exemplo. Em ambiente de "peplum" delirante (todo o trabalho cenográfico tem o seu mérito, também), "Missão: Cleópatra" comete a proeza de recuperar Astérix para o cinema - e a proeza ainda maior, com Astérix ou sem ele, de revelar um realizador que não só é capaz de fazer humor como de o pensar e estruturar (e isso, vai-se tornando raro, sobretudo no cinema europeu).

Vale a pena espreitar o filme, seja-se ou não admirador das aventuras desenhadas de Astérix.

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