O Brilho do Pechisbeque

É um mistério quase inexplicável o fascínio que a indústria hollywoodiana tem pelo ex-actor infantil da Disney, Ron Howard, graduado em realizador de grandes sucessos populares e de crítica. Não adianta negar os valores de entretenimento de "Cocoon" ou "Grinch", e entende-se que "Apollo 13" faça figura de meditação sobre os limites do imaginário americano sempre virado sobre si próprio. Só que, de uma forma geral, os filmes de Howard soam sempre a facilidade, directamente virados para o estereótipo e para a receita infalível, no momento certo.

"Uma Mente Brilhante" vem comprovar à exaustão o lado oportunista e falacioso da ficção "à la Howard". Centrado numa interpretação a piscar o olho ao Óscar, com Russell Crowe a fazer de Russell Crowe, a fazer de esquizofrénico (porque nos lembra tanto o insuportável "overacting" de Dustin Hoffman em "Encontro de Irmãos"?), o filme puxa por todos os cordelinhos, possui todos os lugares comuns de género, um "biopic" decadente em tempo de anulação de géneros.

História, repleta de rodriguinhos, sobre um matemático apanhado pelos seus fantasmas e pelo delírio colectivo anticomunista do MacCarthysmo, "Uma Mente Brilhante" apresenta as personagens alucinatórias - incluindo a do "conspirativo" William Parcher (Ed Harris, em piloto automático) e a do imaginário companheiro de quarto (Charles Bettany) - dentro da mesma lógica representativa das personagens reais, o que constitui uma desonesta forma de aspirar à câmara subjectiva. Acaba por se misturar tudo no mesmo plano sem qualquer critério, escolhendo um momento mais ou menos aleatório para nos revelar: estas personagens existem e estas não. E isto coincide com a estratégia já esboçada de fazer da "mente" um herói nobelizável, com direito a cena chorosa e pseudo-comovente da mulher sofredora e abnegada (pobre Jennifer Connelly, papel de "embrulho" para a nomeação de Crowe) e do filho crescido e babado, perante o triunfo da vontade do génio que venceu a doença.

Muito gostam os americanos desta insistência no "self-made genius", triunfando da doença e fazendo da sua inteligência um espectáculo... No entanto, o mais triste neste penoso exercício de condescendência passa pela segurança com que se vende o produto: tudo com a pílula muito dourada, muito limpinho, muito desinteressante. Como a Academia adora alcoólicos, esquizofrénicos, paranóicos, autistas, quase sempre sem respeito pelos temas sérios que se perfilam por detrás de personagens estereotipadas e falsas, até parece possível que Crowe tenha o seu Óscar (francamente ainda se prefere a descontracção de "Gladiador"). Porém uma coisa resulta clara: o veículo para esse prémio é um pastelão indigesto, destinado a vender gato por lebre a quem quiser consumir.

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