Sangue Negro

O primeiro e o último filme de Joel e Ethan Coen estão nas salas portuguesas: o sanguinolento "Sangue por Sangue", de 1984, e o estilizado "O Barbeiro", de 2001. Em ambos, o marido, a mulher e o amante, o eco das novelas de James M. Cain e o "film noir" dos anos 40. Entre um e outro, também, está aquilo que aconteceu ao cinema de uma dupla que já foi a "next big thing" do cinema independente americano.

Entre "Sangue por Sangue" (1984), que agora se repõe em versão "director's cut", e "O Barbeiro" (2001), o que aconteceu com o cinema dos irmãos Joel e Ethan Coen? Que aconteceu desde esse tempo em que eles eram apontados como a "next big thing" do cinema americano?

A ocasião é propícia, pela comparação proporcionada pela coexistência nos ecrãs do primeiro e do último filme da dupla. Mais ainda, por haver neles uma insistência comum no universo do "film noir", em particular na sua vertente moralmente mais crua e mais sórdida - as adaptações dos romances de James M. Cain, que deram filmes tão tortuosos como "Pagos a Dobrar"/ "Double Indemnity" (Billy Wilder, 1944) e "O Carteiro Toca sempre Duas Vezes"/ "The Postman Always Rings Twice" (Tay Garnett, 1946), para não falar do "Ossessione" (igualmente adaptado do romance do "carteiro que toca sempre duas vezes") que Visconti dirigiu em 1943.

A maneira como esse universo se espelha nos dois filmes já dirá alguma coisa sobre o que aconteceu ao cinema dos Coen: em "Sangue por Sangue" (que continua a parecer o que parecia em 1984: um filme promissor), de modo apropriadamente sanguíneo, carnal, orgânico, nocturno - directo, como se o "noir" fosse uma lembrança, não uma referência; em "O Barbeiro" só há a referência, pré-fabricada em cada plano, e o universo do "noir" torna-se uma coisa desossada, povoada por bonecos sem carne (a personagem de Billy Bob Thornton), arrefecida por camadas de "estilo" sobrepostas umas às outras - como se para os Coen, "cerebral" fosse sinónimo de "esquemático".

Esta sempre foi, no fundo, a grande tendência do cinema dos Coen. Daí a surpresa suscitada pelo reencontro com "Sangue por Sangue": afinal, houve um tempo, mesmo que tenha sido um tempo só de um filme, em que havia qualquer coisa a mexer-se (havia "vida", dir-se-ia) dentro do cinema deles, e em que este não era ainda a casa de bonecas em que depois se tornou. Aliás, um pormenor aparentemente secundário mas nada negligenciável é a própria fotografia de "Sangue por Sangue" (que também vem lembrar que Barry Sonnenfeld, antes de se tornar um realizador sofrível, era um excelente director de fotografia): longe das imagens "claras" e das composições arrumadinhas que vieram depois, a fotografia do primeiro filme dos Coen tende para o borrão, para a mistura e para o envolvimento das sombras e do sangue, dos corpos e da luz. Depois, passou a ser tudo uma questão de evocação.

E em "Sangue por Sangue" ainda havia tempo no cinema dos Coen: veja-se, por exemplo, toda a sequência em que John Getz (o amante de Frances McDormand) se desfaz do corpo de Dan Hedaya (o marido dela), sequência dotada de uma duração psicológica "hitchcockiana", no limite da suportabilidade - e que acaba por ser mais fiel à matriz clássica que os Coen sempre invocaram (expressamente ou não) do que todo o maneirismo esteticizante em que essa invocação se passou a cumprir.

Auto-consciência. Durante toda a obra, os Coen mantiveram-se fiéis, com poucos desvios, a um núcleo temático definido. Por um lado, os constantes reenvios para o cinema, para a sua história e para os seus géneros; por outro, a proximidade com a América interior e "profunda", vista menos com preocupações de observação social do que como cenário propício ao despertar de bizarrias, de situações narrativas criadas por contraste entre o absurdo das acções e das personagens e a placidez superficial dos ambientes. "Sangue por Sangue" e "O Barbeiro" têm isso em comum. E no entanto...

E no entanto há outra característica recorrente no cinema dos Coen que ainda não estava no primeiro filme: a tentação da alegoria, da encenação da encenação, do excesso de sublinhados, do vincar de "pistas de leitura". O momento em que este espartilho se instalou terá sido por ocasião do pesadíssimo "Barton Fink" (1991) - e o único momento em que se aligeirou teria acontecido em "Fargo" (1996), título que não é difícil escolher como o melhor filme dos Coen pós-"Sangue por Sangue". Tal como não é difícil, a partir da comparação entre os dois filmes agora disponíveis, perceber que essa mudança também é o resultado de uma vontade de demonstrar "auto-consciência", de fazer um cinema ostensivamente "de autor".

Sinais? Repare-se por exemplo nos diálogos: reduzidos ao essencial e organizados em função do seu peso na narrativa em "Sangue por Sangue", esquemáticos, ilustrativos e "conceptuais" em "O Barbeiro". Em "Sangue por Sangue" há longos momentos de silêncio; em "O Barbeiro" há um protagonista que diz falar pouco e apreciar as pessoas que falam pouco mas que depois fala que se desunha na narração em "off" -e explica, explica, explica, tudo sobre ele, sobre as outras personagens, sobre as acções... A narração em "off", assim como a estrutura narrativa em "flash back", eram uma marca de género do "noir", o que por sua vez explicará alguma coisa acerca da insistência dos Coen em tal dispositivo.

Reside aqui, em grande parte, a diferença de fundo entre "Sangue por Sangue" e "O Barbeiro". Como se no primeiro filme os Coen ainda acreditassem numa espécie de poder primitivo das formas cinematográficas, naquilo que elas têm de mais físico e de mais visceral - como se ainda acreditassem no "sangue" do cinema. N' "O Barbeiro" já não parecem acreditar, filmam um olhar em vez de olharem, congelam tudo dentro de um "estilo" que é, acima de tudo, vontade de dar a ver que é estilo. Um cinema cosmético, asseado, limpo, sem grãos nem impurezas, à imagem da fotografia de Roger Deakins (um preto e branco asséptico), cujo trabalho de mimetismo da fotografia do "noir" dos forties será tecnicamente brilhante mas ao mesmo tempo deixa uma impressão meramente decorativa - nada, mas mesmo nada, a ver com a aspereza do preto e branco dos anos 40.

O que talvez acabe por se perceber. O "noir" era um género "(a)moral", e sobretudo nos filmes (como os acima citados) inspirados ou próximos do universo de James Cain as personagens eram obrigadas a suspender as suas concepções morais para agirem - qualquer hesitação nesse domínio podia ser o fim. Havia uma densidade psicológica, nas personagens e nos ambientes, que reordenava o "bem" e o "mal", que reformulava os crimes e os castigos. O "noir" era isso, uma "zona de sombra", fria e escura, e a fotografia traduzia-o. Ao contrário dos heróis clássicos do género, o protagonista do "Barbeiro" é um naif, um puro - apesar de a maquilhagem e os trejeitos de Billy Bob Thornton apontarem para algures entre John Garfield e Humphrey Bogart, que nunca foram nem naifs nem puros. É o bem que o move: o primeiro "faux pas" resulta da tentação de agir em proveito próprio (uma "maldade" com circunstâncias atenuantes, pois trata-se de se vingar do amante da mulher), mas depois tudo começa dar para o torto e cada tentativa de endireitar as coisas só as piora. De decepção em decepção, de asneira em asneira, o "barbeiro" encaminhar-se-á para o sítio onde, como se sabe, pululam as boas intenções. Supostamente, "O Barbeiro" deverá ser lido como uma exponenciação de um tema fulcral do "noir": o destino e os seus cinismos. Mas infelizmente vê-se mais como uma caricatura.

Talvez fizesse bem aos próprios Coen aproveitar o "director's cut" de "Sangue por Sangue" para reabsorverem, se ainda a reconhecerem, um pouco da vitalidade que então exibiam. Para ver se ainda iam a tempo de se libertarem da teia em que, a passo e passo, foram enredando o seu cinema.

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