Play It Again, Woody

Hipnose, mulheres-fatais e screwball comedy. Woody Allen a fazer de conta com a cinefilia e com seu passado de escritor de diálogos de cabaret.

Anda o fantasma de Humphrey Bogart por aqui, em "A Maldição do Escorpião de Jade". O primeiro filme com o seu herói, Bogart, que Woody Allen viu foi "O Falcão de Malta", de John Huston, e tinha 10 anos. Mas, desde logo se impôs o embaraço, por causa de um "role model" impossível: Allen só podia identificar-se com Peter Lorre, que era mais baixo, mais insiginificante e mais patético do que Bogart. Em "A Maldição do Escorpião de Jade", C. W. Briggs/Allen, investigador de uma empresa de seguros que já viu melhores dias, usa uma gabardina que em Bogart ficaria a matar mas que nele lhe sobra dos ombros como se estivesse pendurada num cabide (é melhor esquecer o chapéu que se lhe enterra na cabeça até aos óculos...), quando uma determinada e insuportável perita contratada para modernizar a empresa (Helen Hunt) vai directa ao assunto e lhe chama qualquer coisa como formiga desprezível. Allen/Briggs é mesmo um embaraço de gabardina e de chapéu, exactamente como, há 30 anos, Allen era um embaraço (ou seja, de gabardina e de chapéu) nas fotos de promoção de "Play it Again, Sam" (1972), filme de Herbert Ross baseado numa peça do próprio Allen que contava a história de um crítico de cinema e de um falhado amoroso que recebia ajuda do seu herói - sim, esse mesmo, Bogart.

Anda o fantasma de Bogart por aqui, mas anda mais do que isso: "A Maldição do Escorpião de Jade" é uma espécie de flashback nas memórias existenciais de Woody, que são, já que o cinema é mais forte do que a vida chamada "real", as memórias das experiências e dos lugares ligados aos filmes que viu. "A Maldição do Escorpião de Jade" é então uma espécie de reprise - um play it again, woody - da "screwball comedy" (dos filmes de Hawks ou de Cukor) e dos vultos de Bogart, Katharine Hepburn, Lauren Bacall ou Veronica Lake. Como na screwball, os indivíduos falam que se desunham, mas só assim conseguem deixar de lado os embaraços da intimidade. Até que... um hipnotizador (neste caso, a fazer o que o cinema fazia em "A Rosa Púrpura do Cairo")...

É assim: há o tal Briggs, "dinossauro" da empresa; há Helen Hunt, que faz figura de "tubarão". Briggs é perito em descobrir trafulhices, diz que consegue "meter-se na mente do ladrão". O pior é que um hipnotizador que gosta demasiado de jóias mete-se na cabeça dele (e depois na cabeça dela) e transforma Allen num inimigo público nº 1 telecomandado. Há uma mulher fatal em fundo (Charlize Theron), mas serve só para compor o quadro, poque a relação turbulenta é que é a decisiva: Allen e Hunt odeiam-se, trocam diálogos de uma rapidez aproximada à dos de "His Girl Friday", de Howard Hawks, mas o hipnotismo vai serenar a guerra dos sexos e libertar o que ela reprime.

De qualquer forma, nunca Allen e Hunt conseguem ser tão rápidos como Cary Grant e Rosalind Russell em "His Girl Friday", e Allen também não é Bogart, nem Charlize Theron é Veronica Lake. O guarda-roupa também não lhes fica a matar, estão todos a "fazer de" sabendo que é impossível, mas é esse o jogo, quase infantil.

Não é que Allen ao ficar mais velho esteja a ficar também mais criança. Mas é algo por aí. Há uns anos, ele contava que nos primeiros filmes em que entrou pensava sobretudo nele como comediante. "Sem ser pretensioso, da forma como olhamos para a personagem de Chaplin, de Keaton ou de Bob Hope, era assim que olhava para a minha personagem no ecrã". E acrescentou: a sua carreira de realizador foi uma espécie de "crescimento", libertando-se das obrigações para com essa "persona", o comediante. Ou seja, do vaudeville ao cinema. Ora, o que se vem assistindo nos últimos filmes de Woody Allen (só vamos ver no próximo mês a obra anterior, "Small Time Crooks"), é o sentido inverso, uma espécie de reencontro com o desprendimento e com a regressão através do burlesco; não exactamente como no início, porque isso já não pode ser; mas, exactamente, com essa consciência do impossível "play it again". É o reencontro, ainda, com uma tradição de escrita que Woody praticou no início, a "dialogue orientated piece", que por ser mais natural ao teatro do que ao cinema dá a "A Maldição do Escorpião de Jade" o registo "old fashioned" do "vaudeville".

É isso que faz o charme deste título que, na verdade, não é nada indispensável na filmografia de Woody Allen.

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