O Meu Carro É Melhor Que o Teu

Rob Cohen tem mais razão do que julga quando diz que o seu filme "é primário". Claro que nenhum realizador se lembra de promover a sua obra dessa forma, mesmo que a definição seja a mais rigorosa. O que Cohen pretende é que se veja em "Velocidade Furiosa" uma reconfiguração das temáticas primordiais do western, apelando aos "velhos" códigos de honra e de liberdade. E até se permite brincar: "Só que em vez de cavalos, temos cavalos-potência."

Mesmo descontando as gracinhas, "Velocidade Furiosa" é como um daqueles brinquedos ruidosos a pilhas que fazem a delícia das crianças no Natal - e odesepero dos outros 10 segundos depois de ligar o botão.

E, no entanto - ou, talvez, por isso mesmo -, o filme constituiu um êxito de bilheteira nos EUA, arrecadando 40 milhões de dólares (8,8 milhões de contos) no fim-de-semana de estreia (tendo custado 38 milhões) e alcançando mais 100 milhões de receitas ao fim de um mês. Pode ser, como um crítico americano notou, que "as personagens sejam mais planas do que [a actriz] Courteney Cox, mas as rotações por minuto são tão elevadas que isso não importa muito".

Pois não. Fora do ecrã, Vin Diesel (com um nome destes, estava destinado para um filme assim) bem pode citar Camus: num filme onde a caixa de velocidades é a "estrela" de serviço, não há tempo para dúvidas existencialistas. A honra, neste caso, pode ser defendida numa luta motivada por uma sanduíche de atum (na verdade, a questão envolve uma rapariga).

Tudo se passa nas ruas de L.A., onde existe uma subcultura de corridas de automóveis ilícitas. Quando não está na garagem, Dominic (Vin Diesel) é o campeão inderrubável da velocidade. Quando não está na oficina, Brian (Paul Walker) é o bem-intencionado pretendente a campeão e agente do FBI (mas isso só é revelado mais tarde, quando se estiver a passear pela antiga mansão de Liz Taylor e Eddie Fisher), que ganha a confiança de Dominic e da família (mais exactamente: da irmã) e a desconfiança da restante "entourage" - percebe-se porquê: Brian é demasiado "clean" para a galeria multi-étnica que predomina nas provas automobilísticas.

Mas o que é que leva o FBI a meter um agente infiltrado no meio de uma juventude de rebeldes sem causa que só quer provar a tese "o meu carro é melhor que o teu"? A certa altura, julga-se adivinhar: "Preciso de NOS", diz alguém, num tom suspeito. Tratar-se-á de um novo alucinogéneo? Nada disso: é um sistema de injecção super-potente que transforma carros em máquinas voadoras. A seriedade do FBI não está em causa: alguém anda a roubar DVDs dos camiões de carga e os agentes querem confirmar as suspeitas - será o pouco escrupuloso e motociclista "kung fu" Johnny Tran, ou o seguro Dominic que, aparentemente, só quer livrar-se do fantasma do pai, que viu morrer numa corrida (legal) de automóveis?

Para lá da "subtileza" estilística de Rob Cohen - a certa altura, a câmara "mergulha" no interior de um carro, mostrando as reacções do motor em ignição -, não vale a pena tentar encontrar coincidências com anteriores celebrações do automobilismo em filme: podemos lembrar-nos vagamente de "Fúria de Viver" na corrida nocturna pelas ruas de L.A., mas é a "Ruptura Explosiva", de Kathryn Bigelow, que "Velocidade Furiosa" se assemelha mais. De forma constrangedora: basta substituir o automóvel pela prancha de surf.

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