Descubra o Fascínio Deste Verão: Moonfleet

"Moonfleet"/ "O Tesouro do Barba Ruiva" é uma fábula. É um filme sobre a infância, com os seus medos e fantasmas, vistos pelo olhar de uma criança. Com este poder evocativo, talvez só Walt Disney, mas em desenho animado. De resto, o fascínio deste filme de Fritz Lang continua a ser inexplicável, quase 50 anos depois de ter sido feito. Descubra-o este Verão.

"Moonfleet"/ "O Tesouro do Barba Ruiva" não é aquilo a que se possa chamar um "Fritz Lang típico", pelo menos no que diz respeito à fase americana da sua obra. Por razões objectivas, primeiro: é um filme a cores (não há muitos mais na obra do cineasta alemão), é em scope (formato de que Lang não gostava; foi dele a célebre tirada sobre o facto de o scope só servir para filmar "cobras e funerais"), é um filme de reconstituição de época (Inglaterra, século XVIII, quando na América Lang filmou sobretudo a época contemporânea).

Depois, por razões menos factuais: falta a "Moonfleet" a crispação habitual dos filmes americanos de Lang, os ambientes psicologicamente opressivos, o peso fatalista de um destino inexorável, a claustrofobia dos espaços e dos tempos, o retrato de uma desolação moral sem redenção possível para além da que a morte (ou o "fim") pode dar.

Quer isto dizer que "Moonfleet", por não ser "típico", é um Lang "menor"? Exactamente ao contrário, embora durante muito tempo (lembre-se que o filme é de 1955, quando na Europa a "política dos autores" se encontrava na máxima pujança) assim tenha sido considerado, pelo próprio Lang inclusivamente. Mas há coisas que nem o mais extremado autorismo consegue evitar ou prever, e se se pode com maior ou menor esforço retórico "puxar" "Moonfleet" para dentro do cânone languiano (pelo regresso aos ambientes do filme de aventuras que marcou o início da sua obra e viria a marcar o final, com o díptico do "Túmulo Índio", ou pelo trajecto de Fox, a personagem de Stewart Granger, para quem, como para tantas outras personagens de Lang, sacrifício e catarse se confundem no final), isso nem sequer é preciso. "Moonfleet" é daqueles filmes que agem por si mesmos, que possuem um fascínio que escapa a racionalizações - e sendo um filme "de" Fritz Lang, acaba também por ser um filme desses incomparáveis anos 50 do cinema americano, década do canto do cisne.

Medos e fantasmas. "Moonfleet" é uma espécie de fábula, contada quase nos termos de um conto para crianças. É, em boa medida, um filme sobre a infância - e nesse sentido, um filme "assombrado", como o confirmam por exemplo as cenas passadas no cemitério, que Lang mostra pelos olhos do jovem protagonista John Mohune, e que adquirem um poder evocativo de medos e fantasmas como talvez só Walt Disney, em desenho animado, tivesse conseguido fazer (ou Charles Laughton na "Sombra do Caçador", curiosamente um filme quase contemporâneo deste).

Mas o "segredo" de "Moonfleet" não está apenas aí, nessa descoberta das complicações do mundo pelos olhos de uma criança para lá (ou para cá) de todos os esteréotipos habituais das "crianças no cinema". Está, díriamos, no constante vai e vem do ponto de vista narrativo do filme, entre o olhar de John Mohune sobre o mundo dos adultos e o olhar muito mais carregado de Fox sobre esse mundo, que ele vai conseguir voltar a olhar com uma espécie de pureza (à falta de melhor termo) que há muito perdera.

É preciso dizer que Fox é um contrabandista, procurado pelas autoridades com quem pratica um constante jogo do gato e do rato. É alguém que se converteu ao cinismo, e que reordenou a sua visão do mundo a partir de coordenadas que excluem qualquer esperança na espécie humana (de onde ele não se exclui), e para nada existe para além de dinheiro e, eventualmente, poder. E "Moonfleet" é, a partir deste par de protagonistas, um filme em duplo sentido: de um lado, a caminhada para o fim da inocência, a transformação de John Mohune no "homenzinho" que ele tanto deseja ser; por outro, e para Fox, a recuperação de qualquer coisa há muito perdida, que se não for a inocência é pelo menos um estado de amor-próprio e de pacificação de uma relação com o mundo - mesmo que isso implique, como se disse acima, o sacrifício material (a "chave" do tesouro deixada ao miúdo) e pessoal (a partida solitária num pequeno veleiro, provavelmente para morrer).

Tudo isto é feito com enorme contenção emocional (o que talvez seja um sinal da habitual "secura" languiana), de uma forma tal que talvez seja possível dizer que o "efeito" de "Moonfleet" só se começa verdadeiramente a fazer sentir terminada a projecção do filme, quando o espectador, incapaz de "abandonar" o filme (ou de se deixar "abandonar" por ele), o vai refazendo mentalmente, aproximando todos esses bocadinhos tão discretos como reveladores que Lang, de modo quase pudico, esbateu ou deixou nas entrelinhas. Por exemplo tudo o que tem a ver com o passado de Fox, que regressa através da aparição de John Mohune - foi a mãe que o mandou ter com Fox, e ao longo do filme vai-se percebendo que a história entre Fox e a mãe do miúdo foi o ponto determinante da vida dele. Esta espécie de paternidade forçada recebida em legado (mas vivida "de homem para homem") surge-lhe, ao fim de algum tempo, como uma hipótese de reparação de um passado, como hipótese de conclusão de algo que ficou por acabar. O que se passou exactamente fica por explicar, sabe-se apenas que a dada altura alguém "largou os cães", e que Fox transporta no corpo uma cicatriz (não foi, obviamente, "Memento" que inventou o "corpo como memória"...). Mas a maneira como todo o filme é também o retrato de um complicadíssimo e secretíssimo processo mental a desenrolar-se dentro da cabeça de Fox (Stewart Granger, que foi sobretudo um "action man", tem o papel da sua vida neste registo interiorizado) é das coisas mais fascinantes e irrepetíveis que "Moonfleet" guarda.

Pode-se ainda acrescentar que "Moonfleet" é um filme de uma concepção visual inigualável, quer cromaticamente quer no tratamento dos espaços e da mise en scène (para quem não gostava de filmar em scope...). E também se pode dizer, de maneira um pouco mais arriscada (?), que se este é um filme que veio de sítio nenhum, também é um filme que não foi para sítio nenhum - de todos os realizadores americanos contemporâneos, o único que filma como se "Moonfleet" tivesse sido o ponto de onde tudo nasceu é John Carpenter, pelo scope e por tudo o resto.

Sem correr riscos nenhuns: aqui está um filme com quase 50 anos a vir agitar as águas do actual pobrezinho panorama das salas de cinema portuguesas, e a atenuar um pouco a tristeza deste Verão.

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