Qual É a Coisa Qual É Ela

Era uma vez um ogre mal cheiroso, uma princesa mortinha por artes marciais e um burro fala-barato. Deitaram abaixo as convenções do conto de fadas, marimbaram-se para Branca de Neve e os Sete Anões e até mesmo para o "era uma vez...". No focinho do burro reconhece-se Eddie Murphy; na princesa estouvada, e que arrota, Cameron Diaz, e o ogre tem um sotaque escocês feito por Mike Meyers. É "Shrek", conto de fadas anti-conto de fadas.

"Nos anos 80 aconteceu, de facto, um renascimento da animação. Agora, há a animação por computador, que é algo de novo e torna as coisas excitantes para quem vê. Algumas das melhores histórias estão a ser contadas em animação por computador. Não é só uma questão de técnica; não interessa tanto como é que se conta a história, sob que forma, com que técnica; o que interessa é a própria história".

"Shrek" é, assim, o primeiro filme de animação digital que não teve de inibir as suas capacidades efabulatórias por os computadores não estarem à altura.

Anti-conto de fadas. O que é "revolucionário"? " 'Shrek' é um anti-conto de fadas. É um conto de fadas que não parece um conto de fadas - ou que não cheira a conto de fadas", responde Katzenberg.

O cheiro é importante; este ogre, baseado numa história ilustrada de William Steig, cheira mal. Mas é a hipótese que temos para "príncipe encantado". Quanto à princesa, é uma involuntária Cinderela. Melhor: dizem os contos de fadas que ela deve esperar pelo príncipe, mas Fiona está impaciente, mortinha por praticar artes marciais.

"A nossa princesa pensa que tem de se comportar como nos contos de fadas, mas aprende que não, que afinal pode ser quem é. É essa a mensagem contemporânea do filme", diz Andrew Adamson, metade da dupla que realizou "Shrek" (Katzenberg, como num jogo de dados, atirou Adamson, que tinha experiência em efeitos visuais em filmes como "True Lies" ou na série "Batman", contra Vicky Jenson, que esteve ligada ao departamento de animação da Disney, para ver o que dava e saiu-lhe na rifa uma dupla responsável pelo filme que mais dinheiro facturou em 2001 no mercado americano).

"A ideia era pegar nos códigos dos contos de fada, virá-los do avesso e fazer outro conto de fadas", acrescenta Vicky. "A maior parte dos filmes da Disney, por exemplo, apareceu antes dos anos 60, antes da revolução feminina, antes de mudarmos a forma como vemos as relações entre rapazes e raparigas. Ainda há lições maravilhosoas: heroísmo, lealdade, honra; o que mudou mais foi a ideia de que temos de nos parecer, ou ser, de certa forma para encontrar o amor. A princesa tem que ficar no castelo à espera do cavaleiro andante; o cavaleiro andante tem de ser um príncipe atraente. Nunca é: 'e o príncipe chegou a cavalo', é sempre: 'e o atraente príncipe chegou a cavalo'".

Aqui o atrante príncipe é um ogre com mau hálito ("shrek", em iídiche, é "horror")? A princesa está desejosa de ser um "anjo de Charlie". No meio deles há um burro fala-barato, e as criaturas dos contos de fadas, de Branca de Neve aos Três Porquinhos, andam fugidas, num êxodo forçado à procura da Terra Prometida que, afinal, não existe. O castelinho do malévolo Lord Farquaad (torres altas para compensar o complexozinho de inferioridade?) será uma visão sarcástica da perfeita Disneylândia? O ogre manda os anões tirarem "a gaja" de cima da mesa - refere-se a Branca, que está no caixão - e é assim que a DreamWorks dá uma patata na concorrente Disney? Jeffrey saiu da empresa em 1994, no fim de um processo turbulento. Esta é a sua vingança, fazer sentir que a Disney engordou com tanto açúcar e que, afinal, há todo um caminho a explorar em termos de perversidade e irreverência?

"O facto de ser um conto de fadas anti-conto de fadas, e, obviamente, o facto de ser bastante diferente do que foi feito antes torna 'Shrek' único. As pessoas adoram ser surpreendidas. Mas não estamos a ocupar com irreverência o lugar de ninguém, nem mesmo o da Disney, porque a Disney nunca teve isso. Cada um de nós segue o seu caminho. Respeito o que eles fazem - é o património deles, e até contribui para ele -, mas não é o que nos interessa fazer agora". E é o quê?

"O que a DreamWorks está a fazer é mostrar que se a Disney faz filmes para crianças que são OK para os adultos, nós fazemos filmes para adultos que são OK para crianças. São propostas diferentes. Com o tempo, as pessoas começam a sentir que há lugar para histórias mais sofisticadas serem contadas através da animação". Ou seja, "animação" não liga directamente a um género (infantil); isola, apenas, uma técnica.

"Uma das coisas que eu me orgulho de ter sido criado em 'Shrek'", diz Katzenberg, "é um mundo em três dimensões em que os espectadores podem mergulhar. Isso só foi possível porque suspendemos a descrença dos espectadores, para eles poderem fazer parte desse mundo. Esse mundo cria-se com vento a soprar nas árvores, com água e relva" - com um sistema de animação que recria o esqueleto humano, a estrutura muscular ou a textura da pele (rugas e demais imperfeições); com um sistema que reproduz viscosidades e diferentes espessuras. Vem aí o realismo?

"Não, não gosto de realismo fotográfico, é frio, sintético. 'Animar' significa 'dar vida a...' e isso é um processo criativo orgânico", realça Katzenberg - de facto, os "bonecos" de "Shrek" parecem mais "habitados" do que os actores de "Mummy Returns".

"Fiona não é real no sentido fotográfico. De propósito. Tem o 'feeling' da vida. Não acho que o realismo fotográfico seja um Cálice Sagrado da animação", reforça. Os dois realizadores confirmam: "O computador não serve só para imitar a realidade. É um instrumento ao serviço de concepções artísticas diversas. Para 'Shrek', serviu para ser estilizado, mas credível. Como um belo livro para ser percorrido: as personagens são estilizadas, as árvores também, não é um mundo real, é mundo credível. As pessoas têm de esquecer que estão a ver tecnologia. A teconologia não serve só para mostrar visões espantosas; serve, também, para não ser vista".

Próximos desafios para a conquista do troféu da animação: a Disney/Pixar lançará "Monsters Inc.", que promete ir mais além na pele e no pêlo. A DreamWorks voltará à animação tradicional, com um filme pouco tradicional. Katzenberg explica: em "Spirit: The Stallion of Cimarron" é tudo contado pelos olhos de um mustangue, no início do século XIX americano, quando a civilização começou a ameaçar o seu mundo. "Na vida, as lições mais valiosas, são as que se aprendem com a adversidade. Quer se tenha 6 ou 60 anos. O que não é convencional neste filme é que o animal não fala; é um filme totalmente animado, na acepção mais pura do termo".

Até Vicky Jenson, que vai partir para um projecto individual, tem o seu próprio desafio: uma versão animada de "Quanto Mais Quente Melhor". Com peixes. Quem fará de Marilyn Monroe?

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