Ang Lee o Outsider e a América

O sucesso de "O Tigre e o Dragão" levou a que se "desenterrasse" o anterior filme de Ang Lee, "Cavalgar com o Diabo", que de outra forma estaria condenado a passar ao mercado de vídeo. Mais vale, no entanto, serenar os ânimos e acalmar o entusiasmo de quem pede para ser surpreendido. É que não é por esta incursão do cineasta de Taiwan num género cinematográfico que é o filme sobre a Guerra Civil americana, um fracasso nas bilheteiras do país que primeiro fez de "O Tigre e o Dragão" um fenómeno, que Ang Lee alguma vez será destacado. "Cavalgar com o Diabo" até é o seu trabalho mais modesto - embora possa explicitar algumas coordenadas do lugar que o realizador ocupa, ou quer ocupar, na indústria americana.

Desde que adaptou "Sensibilidade e Bom Senso" de Jane Austen, Ang, nascido em Taiwan mas radicado nos Estados Unidos, disse ter encontrado no filme de época uma liberdade que o punha a salvo dos constrangimentos da realidade - sobretudo de uma realidade, a América, onde ele será sempre um estranho.

Ora, a evocação da Inglaterra do século XIX ("Sensibilidade...") e da América dos anos 70 ("Tempestade de Gelo"), projectos à partida bizarros para um realizador que irrompeu na cena internacional com uma trilogia cómica sobre a vida contemporânea em Taipé, eram filmes vitalizados pela ironia e pela distância da exterioridade - e onde ela se podia livremente exprimir.

Era o que se podia esperar que acontecesse em "Cavalgar com o Diabo", em que Ang Lee está, explicitamente, do lado dos que ficaram de fora. Esses são os que viviam a sul do Missouri, a fronteira entre o Norte e o Sul, a fronteira entre o país "civilizado" e o país "bárbaro", à beira da Guerra Civil americana. A vitória dos yankees, e a nova ordem social que impuseram, definiriam o que viriam a ser os Estados Unidos, a democracia e o princípio de igualdade, mas também as tendências hegemónicas e a "ocupação" cultural.

Como tainwanês, portanto (e como todos os não americanos), Ang Lee é simultaneamente fruidor e vítima do "american way of life". Por isso quis fazer um filme sobre os que perderam, os sulistas, e, dentro dos derrotados, dois "outsiders": um descendente de alemães (Tobey Maguire) e um negro (Jeffrey Wright), que descem ainda mais um degrau na escala dos desenraizados. O percurso do filme, da ideia de selvajaria inicial até ao apaziguamento final, é assim uma espécie de programa educacional de qualquer indivíduo apanhado na contradição do "american way of life": estar condenado a encontrar o seu próprio espaço de liberdade. Ang Lee quer-nos dizer que foi isso o que fez.

Sim, este é o programa que está razoavelmente explícito em "Cavalgar com o Diabo". Mas não é ele que solta a energia capaz de fazer transcender as imagens. Nem no destino dos jovens sulistas em fúria (apesar de Ang se ter rodeado de um grupo de actores prometedores, e de todos eles mostrarem as unhas sujas), nem no reencontro com a pacificação, "Cavalgar com o Diabo" nunca chega a mostrar que é capaz de ultrapassar a lógica do telefilme aplicado. Ao contrário do que o título sugere, aqui nada, nem ninguém, assume o risco de cavalgar com o diabo.

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