À Espera de Um Milagre

Adaptando Stephen King, como em "Os Condenados de Shawshank", Frank Darabont regressa com um filme repelente: "À Espera de um Milagre".

É Frank Darabont, o realizador de "À Espera de um Milagre", quem diz ter a mais restrita especialidade de todas: só faz filmes de histórias adaptadas de Stephen King, ambientados em prisões e em épocas passadas. A referência é à longa-metragem com que, há meia dúzia de anos, o argumentista Darabont se estreou na realização, "Os Condenados de Shawshank" - igualmente uma história de presidiários.

Haverá outra similitude entre esse filme e "À Espera de um Milagre", sobre as relações entre um grupo de guardas prisionais de um corredor da morte e os condenados que por ali param em trânsito para a cadeira eléctrica: a mesma vontade de atingir a exemplaridade da "fábula", de abrir a porta para a esperança de redenções e milagres.

Noutro plano, e em termos qualitativos, "À Espera de um Milagre" agrava o que já havia de mau em "...Shawshank", afundando-se num academismo tão pesado quanto lustroso, num visionarismo mais simplório do que ingénuo, e num esquematismo que transforma o mundo num sítio a preto e branco.

Talvez por isso a acção se desenrole nos anos 30 - se há "nostalgia" é por um mundo onde o "preto e branco" não suscitasse questões e a ordem não tivesse grãos de areia no mecanismo. Quando Darabont mostra a personagem de um negro, em vésperas da execução, a extasiar-se perante um filme de Fred Astaire, percebe-se o tipo de "ingenuidade" que o realizador deseja para o seu filme - esquecendo-se que, nos anos 30, qualquer filme de John Ford era mais adulto e complexo do que o seu.

O mundo do filme de Darbont é tão confiante de si próprio que não só não percebe porque é que há gente que não cabe nele, como acha que o destino para quem o recuse só pode ser o corredor que conduz à cadeira eléctrica.

É isso que explica que os diligentes guardas prisionais não se questionem, por uma única vez, sobre a justiça da existência da pena capital e prefiram discutir a justiça de cada condenação em particular sem deixarem de zelosamente cumprirem o dever; é por isso que, na única personagem em quem Darabont tenta conferir espessura (a de Tom Hanks, cada vez mais "regular guy"), essa espessura se reduza à sugestão de uma estabilidade social, emocional e familiar; é por isso que naquele corredor há condenados "arrependidos" e reduzidos a uma caricatura delicodoce (a inenarrável história do ratinho) e outros tratados como encarnações do Mal; é por isso que os guardas tratam os presidiários com a condescendência paternalista de quem lida com garotos traquinas; e é por isso que a magia do negro "bondoso" (há muito tempo que não se via um retrato tão reaccionário de um negro no cinema americano) só faz sentido quando aplicada num contexto de recomposição familiar (salvando da morte anunciada a mulher do director da prisão).

Tudo isto seria apenas pateta se não fosse trabalhado num registo de eloquência que torna "À Espera de um Milagre" num objecto repelente: a "normalidade" a trabalhar, é a regra a devorar a excepção. Sinistro, evidentemente.

Dir-se-á que este desejo de impor uma normalidade não é novo no cinema americano, e que teria em Spielberg (de quem Darabont é uma réplica descosida) um dos seus principais cultores contemporâneos. Só que nem Spielberg nos seus piores momentos conseguiu ser tão primário como Darabont, nem este chega aos calcanhares do talento puramente cinematográfico daquele. Anquilosado ideologicamente, o cinema de Darabont também o está no plano formal - no seu rigor inerte de "composição", no maquinismo das opções de découpage e montagem, e na previsibilidade das lógicas de campo e contra-campo, é um filme de onde o cinema foi expelido para ficarem apenas efeitos de "ordem". Se o mundo fosse tão simples, "À Espera de um Milagre" teria de facto sido realizado nos anos 30 e estaria hoje completamente esquecido.

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