Homem na Lua

Para Kaufman, a vida era um enorme "act", e a morte, em 1984, foi um imenso "gag". Quanto a Jim Carrey, diga-se o que parece evidente: nunca em toda a sua carreira tinha encontrado realizador ou personagem capazes de ordenar a sua energia e versatilidade como aqui.

Quem era Andy Kaufman? Podia ser a pergunta do filme de Forman, mas nem é. Será, pelo menos, a pergunta do espectador português. Sumariamente, aqui fica a resposta: Andy Kaufman, nascido em 1949 e falecido de cancro em 1984, foi um meteoro que cruzou o "entertainment" americano entre os finais da década de 70 e o ano da sua morte, um fenómeno de popularidade na televisão e fora dela, mesmo que, muito provavelmente, fosse mais odiado do que amado.

Kaufman era humorista, na tradição dos "stand up comedians", e o seu humor era tudo menos inócuo - bem pelo contrário, Kaufman servia-se dele como um terrorista, para desafiar e dinamitar as convenções do "american way of life", provocar as consciências mais conservadoras, e subverter as regras habituais do espectáculo e da representação. Como é lógico, tornou-se uma espécie de ícone da "contracultura" pop norte-americana, com a sua morte prematura a ajudar ao nascimento do mito.

É sobre Kaufman que Milos Forman se debruça em "Homem na Lua", aparentemente continuando a evocação da mitologia "alternativa" da América contemporânea iniciada no anterior "Larry Flynt". O que, contudo, não é suficiente para fazer de "Homem na Lua" um "biopic", ou pelo menos não o reduz a tal. Há alguns traços biográficos de Kaufman disseminados pelo filme, mas em última análise o "privado" interessa menos a Forman do que o "público" - ou seja, o processo de constante representação em que Kaufman transformou a sua vida. Ao contrário do que é habitual num "biopic", "Homem na Lua" não vem "revelar" nem "desmontar" nada; antes pelo contrário, dir-se-ia que o seu primeiro mérito é a forma como alinha no jogo de Kaufman (desta vez, Forman não tem que sublinhar o que o separa da personagem, como fizera no filme sobre Larry Flynt) e, em grande medida, prolongá-lo. O filme, de resto, tem uma introdução onde Carrey/Kaufman vem dar o seu aval, o que pode ser visto como uma afirmação da cumplicidade de Forman. Depois, os (curtos) segmentos sobre a sua infância nada explicam (não há psicanálise nenhuma...) e, no fundo, mais não fazem do que transformar os pais de Kaufman nos seus primeiros espectadores; do mesmo modo, a relação entre ele e a mulher (interpretada por Courtney Love) cinge-se ao essencial e aparece assombrada pela suspeita de ela não ser outra coisa para além de um adereço para os números dele.

Morte, a piada final

Portanto, o mistério a que todo o "biopic" pretende dar resposta subsiste: por que é que Andy Kaufman era Andy Kaufman? Mas esse é o mistério que, lealmente, Forman preserva, recusando-se a esgravatar nas máscaras assumidas pela personagem. "Theres no real you", diz-lhe a mulher num diálogo-chave do filme, e tanto ele como Forman concordam: apenas um movimento constante de representação, levada a um ponto onde a destrinça se torna impossível.

Ao mesmo tempo, esta atitude de Forman permite-lhe ficar a sós com a dimensão espectacular de Kaufman. Uma dimensão marcada pela enorme agressividade e provocação patenteadas pelo humor da personagem - quer esteticamente (veja-se a sequência da gravação do seu primeiro programa de televisão, e o desconcerto causado junto dos executivos da estação) quer politicamente (toda a longa "digressão" de Kaufman, travestido de "wrestler", pelo sul dos EUA). Aqui entra certamente em cena o fascínio de Forman pelas lógicas e contradições da "sociedade do espectáculo" americana: o que lhe interessa na história de Kaufman é também o facto de, improvavelmente, ele ter sido um fenómeno de popularidade, ter sido merecedor de "prime time", e de no fundo ter sido o seu próprio cavalo de Tróia, entrando em pleno "establishment" para lhe vir abalar as estruturas. Por esse lado, "Homem na Lua" é um filme sobre a tolerância (limitada) do "sistema", e sobre o facto de um homem expulso de um campo de meditação transcendental pelo carácter "desagradável" do seu humor ter podido, e sabido, utilizar esse "sistema" em proveito próprio.

Apesar disso, Forman nunca se deixa levar apenas pela análise política. Volta sempre à personagem, como que fascinado pela sua "ilegibilidade", e pela consequente continuidade entre a vida e as representações. O retrato que Forman faz é o de um homem para quem a própria vida era um enorme "act", e o momento da sua doença permite-lhe sublinhá-lo: é quando Kaufman se desloca às Filipinas, à procura de uma cura nas medicinas tradicionais e "alternativas", e descobre que o suposto "cirurgião" é um charlatão. Para Kaufman, isso é o mesmo que uma sentença de morte, mas ele ri-se: não tanto por encontrar no curandeiro uma espécie de equivalente mas sobretudo por ele lhe permitir participar num derradeiro "gag", corolário lógico de uma vida que tentou tudo para ser um imenso "gag" - e que, como se vê na sequência do funeral, continuou a sê-lo depois da morte.

Quanto a Jim Carrey, porventura este ano o grande injustiçado pela roleta dos Óscares, diga-se o que parece evidente: que nunca em toda a sua carreira tinha encontrado realizador ou personagem capazes de ordenar a sua energia e versatilidade como sucede aqui. Carrey é magnífico, quer na contenção quer na euforia, e por ele passa parte fundamental da aposta ganha de "Homem na Lua".

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