Beleza Americana

Os "Globos de Ouro" já o bafejaram, e em princípio os Oscares estão em lista de espera: "Beleza Americana" tem deixado um rasto de satisfação por onde tem passado, e em Hollywood há quem rejubile, falando do filme do estreante Sam Mendes como de um sintoma de que algo está a mudar, e de que o cinema americano "mainstream" foi capaz de encontrar forma de se revigorar e renovar, tanto temática como estilisticamente.

O "hype" é, como noutros casos, uma coisa bem montada. E quando se dá por ele já se tornou ponto assente e opinião unanimemente partilhada. Podemos aceitar que alguma coisa mudou, ou está a mudar, em Hollywood - algo que teria a ver com o momento em que o "centro" descobriu, fascinado, tudo o que podia ganhar se avançasse em direcção às "margens", diluindo fronteiras num processo cuja genealogia talvez remonte a alguns anos atrás e ao chamado "efeito Miramax". Alguns, se não mesmo todos, os grandes filmes americanos dos últimos anos provêm dessa zona difusa que circunda o "mainstream", sejam eles assinados por jovens cineastas de guerrilha (Todd Haynes e "Velvet Goldmine", Todd Solondz e "Felicidade", Paul Thomas Anderson e "Boogie Nights") ou por "mavericks" mais ou menos capazes de se integrarem (Clint Eastwood e "Um Crime Real", Terrence Malick e "A Barreira Invisível", David Lynch e "Uma História Simples").

Parece indesmentível que "Beleza Americana" também provém desse território, mas (voltamos ao "hype") não só não está sozinho como, mais do que veículo ou causa de qualquer mudança, dir-se-ia ser ele próprio já uma consequência desse movimento - não é todos os dias que um estúdio (e logo a Dreamworks e Spielberg, que foi um dos grandes impulsionadores do projecto, possivelmente por ter visto aqui o reverso perfeito para as suas utopias da classe média) dá luz verde e meios correspondentes a um argumento atípico, ainda por cima tendo ao leme um realizador estreante (embora a fama granjeada pelo encenador inglês Sam Mendes nos palcos de Londres e da Broadway oferece algum capital de segurança).

Desmontar para repor e ordem

A questão é que, sendo um bom filme, "Beleza Americana" não é melhor do qualquer filme dos realizadores acima citados. E sobretudo, o que deve ser a explicação para se ter tornado no emblema "oficial" da "nova Hollywood", trata-se de um filme que contém em si mesmo, incorporados na sua lógica, todos os antídotos para as suas transgressões - ou seja, é qualquer coisa que se mantém sob controlo, e que permite, de maneira mais ou menos tortuosa, a reposição final de uma ordem e (pelo menos) de uma aparência de estabilidade. Quer dizer, desmonta-se o "way of life" da classe média americana, invertem-se os seus valores e os seus sonhos, mas, como que numa confirmação da impossibilidade dessa inversão, sobrevem uma espécie de ajuste de contas moral que recoloca as coisas nos seus devidos sítios - um ajuste que, diga-se, até faz sentido na lógica de "Beleza Americana", e até o pode transformar em "fábula", ou seja, em história onde há uma moral a extrair. É claro que pelo caminho se atira muito ácido e muita ironia sobre a sociedade americana e sobre a sua trave-mestra (a família, claro), que isso é muito divertido e salutar, e que é por tanta desfaçatez que o filme de Sam Mendes nos conquista.

De alguma forma, "Beleza Americana" é um filme sobre "o que foi bom enquanto durou". A frase podia ser dita pela personagem de Kevin Spacey, motor do filme (sem desprimor para a igualmente prodigiosa Annette Bening) e de todas as reviravoltas nele operadas ao bom tom, ao bom gosto e ao bem estar que uma família de classe média é suposta preconizar. Spacey é um executivo, na casa dos 40 anos, que um dia, no meio do tédio que lhe enche o quotidiano, tem uma espécie de epifania: para quê suportar tanta chatice se, livrando-se de todas as suas responsabilidades (profissionais, sociais e familiares), a sua vida continuará a ser mais ou menos a mesma? Assim, despede-se do emprego, depois de chantagear o patrão, e emprega-se num restaurante de "hamburgers" numa bomba de gasolina; toma o poder em casa para desmontar as hipocrisias que sustêm a família em pé (destronando a mulher, Annette Benning, maníaca da ordem, do "status" e de uma carreira de agente imobiliária); troca o carro familiar pelo carro de desporto dos seus sonhos; e "last but not the least" deixa-se obcecar (vivendo a obsessão com prazer) por uma colega da filha adolescente, mais como sinal do seu desejo de regressão do que por tentações pedófilas (de resto, o primeiro travão posto em toda esta espiral tem justamente a ver com isto).

Em tons que, no seu melhor, fazem lembrar Lynch, e nos momentos menos conseguidos um filme como "A Tempestade de Gelo" de Ang Lee, Sam Mendes constroi em torno de Spacey um pequeno microcosmos de ambições, frustrações e medos. Bening e a sua carreira, a filha e o "generation gap" que a afasta dos pais, o vizinho militar (um fabuloso Chris Cooper) em pânico por pensar que o filho é homossexual, e este filho, que não é homosexual mas é "voyeur" (constantemente gravando em video o que se passa para lá das janelas da casa de Spacey e Bening) e pequeno "dealer", e cujo distanciamento cúmplice em relação à acção talvez seja suposto representar o ponto de vista de Sam Mendes - mas se o é, peca por indefinição, indeciso entre ser "cronista" ou mero observador descomprometido, configurando talvez a maior fraqueza de "Beleza Americana".

De resto, não é tanto nos remoínhos da narrativa - nem no "ajuste" final por ela gerado - que se encontra o melhor de "Beleza Americana". Antes no seu humor, por vezes brutal; na sua aparência de realismo, sempre denunciada pela evidência da sua composição, sobrecarregando-a e, por isso mesmo, corroendo-a; e na força iconoclasta com que, por vezes, o olhar da câmara se funde com o de Kevin Spacey, partilhando em pleno a sua fúria regressiva. É por isto que o filme cumpre a sua função transgressora - e por algum motivo a trangressão tem momentos tão exaltantes que é dela, e não da multa, que depois nos ficamos a lembrar.

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