Encontro Acidental

Um homem (Harrison Ford) e uma mulher (Kristin Scott-Thomas) são "empurrados" um contra o outro pela morte dos respectivos cônjuges - que eram amantes. Ford , animal ferido, quer "desenterrar" a mulher e obrigá-la a reviver a traição. Não se pode estar obcecado com mortos sem se perder o contacto com a vida. Filme necrófago.

Sydney Pollack é um cineasta cuja obra surge marcada por uma espécie de continuação de alguns dos mais fortes estereótipos narrativos e de representação herdados do cinema clássico contemporâneo. Voluntariamente ou não - e recorde-se que Pollack começou a filmar nos anos 60 de todas as rupturas no sistema de Hollywood - colou-se à pele de Pollack a imagem de cultor de um cinema ligeiramente anacrónico e consciente disso mesmo, investido da docilidade emocional, da suavidade de contornos e do leve maneirismo que caracterizaria um hipotético estilo "neo-clássico".

Não por acaso, Pollack revela-se um cineasta fiel aos géneros e, dentro deste contexto, dedicando uma especial atenção ao melodrama; com resultados díspares e nem sempre muito felizes, foi ele o autor de algumas das mais célebres tentativas de actualização - ou de ressuscitação? - do "glamour" melodramático de outros tempos, em filmes como "África Minha", "Havana" ou, título que vem mesmo a calhar nesta linha de argumentação, "Sabrina", o "remake" do filme homónimo de Billy Wilder.

Com resultados díspares, dissemos e insistimos: o estilo "neo-clássico" de Pollack implicando um certo nível de consciência formal e processual, traduz-se muitas vezes (demasiadas?) numa saturação de signos e códigos do clássico, calculista e pré-programada, com tendência a substanciar-se numa espécie de cobertura de "glamour" açucarado como substituição de uma verdadeira energia narrativa ou formal. Pode ser enjoativo e nalguns casos - inclusivamente nalguns dos mais célebres títulos do realizador - é mesmo muito.

O momento em que as paixões congelam

De todas as maneiras, há sinais de um outro Pollack, mais sombrio e mais duro, espalhados por filmes inteiros ou apenas em certas sequências ou certos planos da sua obra. Ou nas suas presenças como actor em filmes de outros realizadores: talvez Pollack nunca tenha sido tão perturbante como nas suas interpretações em "Maridos e Mulheres" de Woody Allen e, sobretudo, "De Olhos Bem Fechados" de Kubrick. Diríamos que é dessa faceta mais ou menos oculta que deriva "Encontro Acidental", filme onde, por uma vez, encontramos o realizador a trabalhar num registo que, evitando reiterar a suavidade do melodrama "light" que habitualmente pratica, faz do confronto com a brutalidade de algumas emoções a sua razão de ser. De algum modo - e descontando o pacificador final, que mais parece um enxerto no corpo do filme - "Encontro Acidental" é um anti-melodrama. A surpreendentemente negativa aceitação do filme na América terá um pouco a ver com isso: lamentou-se a ausência de "heat and passion", quando, justamente, "Encontro Acidental" é um filme sobre o momento em que as paixões congelam, e sobre a obsessão pelo irrecuperável que projecta as personagens num enorme vazio emocional, ou numa espécie de "buraco negro" da memória. Ou ainda, se quisermos, um filme sobre a maldição que os mortos deixam como herança aos vivos.

A história, em poucas palavras, é a de um homem (Harrison Ford) e uma mulher (Kristin Scott-Thomas) "empurrados" um contra o outro pela morte, num acidente de avião, dos respectivos cônjuges - que, descobrem eles depois, eram amantes. Pollack descreve toda esta sequência de acontecimentos, passando pela surpresa e choque das personagens até chegar ao ponto mais interessante da questão, e ao motor do filme: como é que estas personagens vão lidar com esta memória que de algum modo lhes é imposta do exterior e que, do mesmo golpe, se vê tão subitamente adulterada? Que imagens vão dominar essa memória? As da (para nós aparente) felicidade conjugal ou as da revelação posterior à queda do avião?

Aqui chegados, e sem desprimor nem para a fabulosa Kristin Scott-Thomas nem para a sua personagem, é Harrison Ford que toma conta do filme e se assume como seu centro motriz. Enquanto Scott-Thomas tenta apagar da memória as últimas revelações, agir como se nada tivesse sabido e lidar com a imagem da sua vida que já tinha antes de tudo acontecer, Ford, dominado pela obsessão de continuar a saber, e saber sempre mais, entra numa espécie de curto-circuito (da razão e dos afectos) que o leva a escavar, até ao fundo, todos os pormenores da relação extra-conjugal da mulher.

É um animal ferido e enfurecido, e muitos poucos filmes terão explorado assim a "face oculta" que Ford sempre teve sem darem também o contraponto da bonomia. Quer, no fundo, "desenterrar" a mulher e obrigá-la a reviver, à sua frente, a traição. Para se torturar, claro, pois a dimensão auto-punitiva do seu comportamento é evidente. Mas para se vingar também: "Encontro Acidental" é, nesta perspectiva, a história de uma devassa de privacidade "post mortem", a história de uma espécie de "arqueologia" emocional em que fosse preciso destruir os indícios encontrados em vez de os preservar. Lembramo-nos da necrofilia de James Stewart em "Vertigo"; mas aqui Harrison Ford é, mais cruamente, necrófago: anda, literalmente, a "comer" os restos da sua relação, com uma voracidade que se vê, no seu ponto culminante, na sequência da descoberta do apartamento em que os amantes se encontravam.

O trajecto de Ford é uma via de auto-aniquilação, não se pode estar obcecado com mortos sem se perder o contacto com a vida. A dita sequência deixa-o bem esclarecido, e é por isso que o retemperador final - "flash forward" rumo a um Ford sereno e aparentemente pacificado, trocando com Scott-Thomas a promessa de "início de uma bela amizade" - parece mais do que contraditório, absolutamente irrelevante.

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