Mais que um "pequeno impulso aquático"

João César Monteiro encerra a trilogia que dedicou à personagem de João de Deus com o julgamento desse sátiro e asceta, benemérito e oportunista, cruel e misericordioso, obediente e anarca. E acaba assim: em silenciosa e serena aceitação, num filme luxuriante, "As Bodas de Deus".

Com "As Bodas de Deus" chega João César Monteiro ao fim da trilogia iniciada há dez anos com "Recordações da Casa Amarela" e posteriormente continuada em "A Comédia de Deus" - trilogia centrada na personagem de João de Deus, espécie de alter ego do próprio César Monteiro, permitindo cruzamentos (auto)biográficos mais ou menos secretos que não deixam de alimentar boa parte dos três filmes da série.

"As Bodas de Deus", como derradeiro capítulo, assinala a altura, se não do julgamento, pelo menos da revisão da personagem e das suas andanças ao longo da trilogia. Entre os esgotos do final de "Recordações da Casa Amarela", de onde João de Deus saia, à la Nosferatu, para "lhes dar trabalho", e as alturas celestiais de "A Comédia de Deus", ou seja, entre o baixo e o alto, entre o Inferno e o Céu, "As Bodas de Deus" surge como o filme mais "terreno" da trilogia (o filme do purgatório?), o filme que mais parece clamar pela intervenção de uma justiça divina (ainda a ideia do "julgamento") mas só encontra como resposta a justiça dos homens. De certa forma, é um filme construído em torno da impossibilidade do sagrado e do silêncio de Deus - "esse grande sacana está-se nas tintas", como diz a personagem de João de Deus.

Na Terra como no Céu

É no entanto com um sinal aparentemente divino que "As Bodas de Deus" começa. Um auto-denominado "enviado de Deus" entrega a João de Deus uma mala cheia de dinheiro, dinheiro esse que lhe permitirá "ascender" na escala social, tornar-se o "Barão de Deus", comprar uma quinta e viver como um nobre. Até ao momento em que, envolvido numa fraude de causas e motivações obscuras, se vê desapossado de tudo e enfiado na prisão, por não conseguir explicar cabalmente de onde lhe veio o dinheiro para tanto luxo - e porque justificá-lo com um enviado de Deus é explicação curta, tanto mais que de "enviados de Deus" está o manicómio cheio.

Não lhe resta senão aceitar o destino e a imanência, numa resignação sofredora e auto-punitiva que toda a última parte do filme (um dos cumes absolutos do cinema de César Monteiro) encena de modo estarrecedor: da violência emocional do plano de João de Deus na sua cela, pendurado nas grades enquanto ouve a "Tosca", à surdina do encontro, ainda na prisão, com Joana, que culmina com a citação, justíssima e inesperadamente a propósito, da célebre frase final do "Pickpocket" de Bresson: "Ó Joana, que estranho caminho tive que percorrer para chegar junto de ti".

E Joana, no filme como na frase, é tanto uma mulher como um símbolo da última hipótese de uma harmonia terrena, da última esperança de "um lugar na Terra como no Céu" (diria Godard) ou da última oportunidade de pacificação de uma relação com o mundo. Se "As Bodas de Deus" é certamente um filme triste, é-o sobretudo por acabar assim, sem revolta nem fúria, em silenciosa e serena aceitação.

"Quantos Césares fui...", responde João de Deus ao inspector da polícia que o interroga, quando este lhe pergunta com que Roma se identifica, se com a "virtuosa" se com a "debochada". "As Bodas de Deus", enquanto conclusão e resumo da trilogia, é o tempo e o lugar de convocação de todos esses "Césares" ou de todos esses "Joãos de Deus": do João de Deus sátiro ao asceta, do João de Deus carnal ao espiritual, do João de Deus benemérito ao oportunista, do cruel ao misericordioso, do obediente ao anarca, do João de Deus culpado ao João de Deus vítima. "As Bodas de Deus" resiste, apesar do final, a fixar-se numa só imagem da personagem - e todas estas sucessivas encarnações de João de Deus não só exprimem as suas contradições e a sua incapacidade para se reduzir apenas a determinada faceta como participam ainda na dicotomia alto/baixo que marca toda a trilogia. Como se de um homem chamado "Deus" não se pudesse esperar outra coisa senão esse dilaceramento entre duas naturezas.

Ao mesmo tempo, semelhante coexistência de "Césares" exponencia o grau de auto-exposição, já não de João de Deus mas agora do próprio João César Monteiro. Mais uma vez, e se calhar nunca como aqui, tudo passa pelo corpo do César Monteiro/actor, literalmente atravessado pelo filme, transformado, à maneira dos grandes burlescos (de que César Monteiro é um dos poucos legítimos herdeiros contemporâneos), na própria matéria do filme. E a auto-exposição, se tem sempre qualquer coisa de auto-flagelação, adquire em "As Bodas de Deus" os mais punitivos contornos de sempre - voltamos ao fabuloso plano da cela da prisão, onde a exaltação da alma proporcionada por Puccini é insuficiente para vencer as grades e suprimir a repressão exercida sobre o corpo.

"As Bodas de Deus" é, provavelmente, o grande filme português do ano. É, em simultâneo, música, teatro, literatura (ninguém escreve como César Monteiro, que de resto é um dos maiores dialoguistas da história), sem nunca deixar de ser, até à medula, cinema. O seu despojamento formal é só ilusório - ou para quem ache que o plano fixo é, por si só, sintoma de austeridade - porque, no fundo, "As Bodas de Deus" é um filme luxuriante, com os seus elegantíssimos enquadramentos, as suas fabulosas composições e movimento interno dos planos, o seu riquíssimo trabalho na banda sonora. Contradiríamos, portanto, uma das primeiras frases proferidas por João de Deus: "As Bodas de Deus" está, de facto, muito mais longe de ser um "pequeno impulso aquático" do que uma "orgia celestial". As orgias fazem-se para os sentidos, o cinema de "As Bodas de Deus" também.

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