Ilhéu de Contenda

Cabo Verde é um país sobre o qual os olhares cinematográficos tem sido maioritariamente exteriores, transportando uma visão estrangeira que não deixa, à priori, de reproduzir uma ideia pré-concebida - e se essa ideia encontra depois uma verdadeira e justa relação com o território já é outra história. Quanto mais não seja, "Ilhéu de Contenda" é um filme que funciona ao contrário, e onde o olhar sobre Cabo Verde se faz de dentro para fora. É o primeiro filme de Leão Lopes, e por entre alguns desequilíbrios e fragilidades porventura inevitáveis, acaba por ser um olhar bem mais coerente do que se calhar se esperaria. E essa coerência, se não ultrapassa, ajuda pelo menos a atenuar as referidas fraquezas de construção. "Ilhéu de Contenda" desenrola-se durante os últimos anos do colonialismo português, e esse é um tema central: desenhar, numa espécie de mapa "mental", o ponto onde se apaga uma colónia (quer dizer um território sob influência estrangeira) e começa a sentir-se um país. Todas as inúmeras personagens que "Ilhéu de Contenda", sejam elas fulcrais ou anedóticas, representam a gama de reposicionamentos possíveis face a essa identificação - há os que a sentem, há os que são incapazes de a compreender. E há aqueles que, compreendendo-a, percebem simultaneamente que é o seu próprio estatuto que se encontra em causa e que há um tempo que se apresta a chegar ao fim. Na evolução das personagens de João Lourenço e Camacho Costa sintetizam-se as reacções opostas a essa compreensão: um aceita, o outro recusa-se a fazê-lo. O filme de Leão Lopes começa, aliás, com uma bela cena, bem reveladora do sentimento de fim de um tempo que prepassa por todo o seu retrato de Cabo Verde: é a sequência da personagem de Isabel de Castro, momento em que passa o testemunho ao filho (a personagem de João Lourenço), percebendo este toda a dimensão simbólica daquela morte - é o próprio colonialismo que começa a desvanecer. Esta sequência, com surpreendente entrada da pequena banda que vem fazer o luto pela velha senhora, é já um primeiro indício de que em Leão Lopes existe algum real talento cinematográfico, e é o primeiro momento em que se exibe um dos principais trunfos desse talento: a extremamente justa articulação entre o tempo do filme e o tempo da música, essas mornas que parecem tomar conta de tudo e impor o seu ritmo a "Ilhéu de Contenda". Nunca se trata de uma utilização meramente pitoresca e folclórica da música, até porque ela acaba por se sentir mesmo quando não está lá: é qualquer coisa de orgânico, que se insinua pelos interstícios do filme, e o dota de um espírito melancólico de uma genuinidade a toda a prova. Triste e alegre ao mesmo tempo, numa cadência que, a esse nível não falha.

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