O Homem Que Vem do Nada

Não é a primeira vez que Tom Hanks vai parar a uma ilha. Em 1990, uma doença terminal levou-o a deixar para trás a frustrante vida de homem normal, aceitando a excêntrica oferta de um milionário para que viajasse por mares exóticos e se sacrificasse num vulcão. Foi em "Joe contra o Vulcão", curiosíssima comédia de John Patrick Shanley.

Em "Cast Away - O Náufrago", Tom Hanks não se transforma em Robinson Crusoe por vontade própria, por uma tomada de consciência sobre a inutilidade da (sua) vida. É o destino, sob a forma de acidente aéreo, que o confronta subitamente com essa solidão. Mas a experiência sacrificial é a mesma, com os mesmos contornos de redenção espiritual.

Olhando para a sua filmografia verifica-se, aliás, que nos últimos dez anos os filmes têm sujeitado Hanks - com uma crueldade quase sádica - ao ritual do despojamento, quer seja em "A Fogueira das Vaidades" (1990), de Brian de Palma, "Filadélfia" (1993), de Jonathan Demme, ou "Forrest Gump", de Zemeckis (1994).

Nesses filmes - a via sacra do "yuppie" que vai parar por acidente a um gueto de negros (o seu filme mais incompreendido e um doloroso fracasso de bilheteira); a imolação do "yuppie" com sida ou o périplo do idiota que nos conduz, como numa fábula, pela História da América (estes, os que lhe deram Óscares) - tiraram tudo a Tom Hanks. Ficava sem nada, a não ser com ele próprio e com o desconforto do seu corpo - para no fim, obviamente, ganhar o sentimento da conquista de uma nova humanidade.

Em "O Náufrago" ecoam motivos dessas presenças anteriores: é impossível não olhar para o emagrecimento de Chuck Noland, conseguido a custo de uma dieta durante o ano que mediou entre uma primeira e uma segunda fase de rodagem do filme, e não sentir a prova de sangria física que a maquilhagem lhe dava em "Filadélfia"; ou ver aquele plano de Chuck no avião, de regresso à civilização - hirto, joelhos juntos - e não pensar na "inocência" que se petrificava em Forrest Gump. Nesses momentos, "Cast Away - O Náufrago" é quase burlesco.

Porque é que Hanks atrai tamanhas provações (não em todos os filmes, é certo, mas naqueles que se tornaram os mais emblemáticos da sua "persona" cinematográfica)? Talvez, porque não há nada de especial nele - não há nada de especial no corpo dele? - e essa presença neutral de página em branco tem sido escolhida para reflectir, como um espelho, as utopias e valores da América.

Não é por acaso, provavelmente, que Hanks é o actor em filmes importantes de Spielberg, Zemeckis ou Joe Dante, os chamados "movie brats". Hoje, eles fazem parte de uma elite de Hollywood a que alguém chamou os "child men": não se drogam, não são rebeldes, não são "sexy". Hanks, que já fez a personagem de uma criança que vivia dentro de um corpo adulto ("Big"), está associado a esse grupo que aparece invariavelmente nas listas dos mais poderosos da indústria e dirá mesmo, com alívio: "Não ameaço o sentido de virilidade de um homem, nem o sentido de decoro de uma mulher." E ninguém se lembrará dele numa cena de sexo de um filme, tal como ninguém se espantou, quando Antonio Banderas, que fazia de seu amante em "Filadélfia", disse que gostaria de se casar com o adorável ser humano chamado Tom Hanks.

A geração dos "movie brats" é a dos tipos que passaram a infância e adolescência recolhidos no seu mundo interior (Hanks confessa que perdeu a revolução sexual, porque não tinha confiança em si próprio) a estabelecer planos para a conquista do exterior (e conquistando-o, como provam os "cachets"). São esses cineastas, afinal, que têm persistido em renovar o olhar sobre a mitologia americana, suas redenções e inocências. São, obviamente, os conservadores.

Assim, a estrela que os fotógrafos dizem ser das mais difíceis de fotografar (porque fora do ecrã parece não ter realidade física, é preciso inventá-la), o actor que no passado de Hollywood estaria destinado a ser o melhor amigo da personagem principal ou aquele que morreria na guerra, é hoje veículo de eleição para histórias de revelação espiritual. Os planos finais de "Cast Away - O Náufrago", quando a aprendizagem se cumpriu e Tom Hanks reencontra a pureza da paisagem rural americana, abrem-se à epifania. O rosto dele está "branco", como o nada. Ainda serve a frase publicitária de outro filme de Zemeckis: "Tom Hanks é Forrest Gump".

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