A Fuga das Galinhas

Primeira longa-metragem da dupla dos filmes de Wallace & Gromit, agora produzidos por americanos. Continua o árduo labor "artesanal" para fazer movimentar e falar bonecos de plasticina, em mais uma série de postais sobre a ruralidade inglesa.

A classe média britânica está no galinheiro, resignada com a impiedade do mundo que tem a forma de um matadouro para aves pouco férteis em ovos. O barracão 17 de uma quinta inglesa do Yorkshire mais parece um campo de concentração, onde o aleatório da morte é um maquinismo, no barracão ao lado, que transforma galinhas em tartes. A sorte, companheira malvada, é um dado nas mãos de uma gananciosa proprietária: Mrs Tweedy, algoz de botas altas, que transforma em recheio as aves que não põem ovos.

E assim, com um grupo de galinhas desesperadamente optimistas em relação à sua má fortuna, mas sempre esforçadas - como a improvável heroína, Ginger -, Nick Park e Peter Lord, os animadores vedetas do estúdio de animação Aardman, de Bristol, estreiam-se na longa-metragem.

Depois de, com a trilogia Wallace & Gromit (as curtas "A Grand Day Out", de 89, "The Wrong Trousers", de 93 e "A Close Shave", de 95), terem gerado o culto e tirado aos Massive Attack a responsabilidade única de terem posto Bristol no mapa (e depois de terem recebido Óscares para os dois últimos títulos da trilogia, para além de um prémio da Academia para "Creatures Comforts", de 1990), cederam à esperada tentação hollywoodiana, realizando com "A Fuga das Galinhas" o primeiro de cinco filmes de um contrato com a DreamWorks de Geffen-Katzenberg-Spielberg.

Os 45 milhões de dólares que lhes deram é superior, por exemplo, ao custo total dos três filmes da série Wallace & Gromit. Mas isso é uma "miniatura", se se comparar com os orçamentos habituais de outras produções de animação. A escala é, decididamente, "humana". Não por acaso: Park e Lord, animadores de bonecos de plasticina, vêem os seus filmes como trabalhos de "acção real em miniatura", ou seja, mais perto dos filmes com personagens de "carne e osso" do que outras formas de animação. As personagens, os "décors" e o guarda-roupa não são desenhados nem criados por computador (como "Toy Story" ou "Vida de Insecto"). "A Fuga das Galinhas" é um filme "feito à mão", através da "masoquista", como alguém lhe chamou, técnica de "stop motion", trabalho minucioso que obriga a filmar 24 vezes a mínima alteração da pose de cada um destes bonecos complexos (com esqueletos feitos de metal, o exterior de látex e borracha de silicone, as cabeças e as mãos, as partes mais expressivas e manobráveis, em plasticina) para se conseguir um segundo de movimento em filme. Pense-se nos planos em que há várias personagens em cena, junte-se ainda o movimento dos adereços do cenário, pense-se nos bicos das aves, colecções de bicos para as várias expressões faciais das aves que falam, e multiplique-se...

Escala "humana", ainda, porque as fábulas de Park e Lord são postais da vida rural inglesa, sob a forma de um jardim zoológico trabalhado por memórias de infância (Park, por exemplo, foi criado no Lancashire rural, e depois embalou frangos numa fábrica e num matadouro - percebe-se de onde vem a máquina de tartes...) ou pelos filmes que viram, concretamente as comédias inglesas da Ealing (nome dos estúdios ingleses que marcaram um período, nos anos 40 e 50, do cinema britânico), com o seu olhar sobre a realidade social, o sistema de classes e uma excentricidade "tipically british".

Veja-se o galinheiro de "A Fuga das Galinhas": deve menos à explosão de um "maravilhoso" de animação e mais à reconstituição "realista" de uma memória e de uma textura dos sombrios filmes de guerra de "acção real". Park e Lord fazem, explicitamente, referências a filmes como "The Great Escape", de John Sturges (62) em que Steve McQueen era um prisioneiro de guerra, ou a "Stalag 17"/"O Inferno na Terra" (53), terrível parábola moral de Billy Wilder. Mas está lá tudo o resto que a Inglaterra, mais próxima da II Guerra Mundial do que a América, via do conflito, nem que fosse através dos filmes e da ilusória protecção, das "grades", do "countryside" inglês.

Este encontro entre Hollywood e Bristol, que aumentou a visibilidade do labor de Park e Lord, não alterou em nada aquilo que, no trabalho de animação da Aardman, é uma alternativa às regras dominantes do género - leia-se, Disney. E não poderia sê-lo de outro modo, já que para a própria DreamWorks "A Fuga das Galinhas" é mais uma peça da sua estratégia de consolidar posição no reino da animação, sendo os esforçados ingleses o mais recente cavalo-de-batalha dos americanos - contra a Disney.

Mas sobre essas batalhas e desafios para o domínio do zoo da animação, e sobre o mais espalhafatoso amigo americano, os fleumáticos britânicos introduzem distância e ironia a rodos em "A Fuga das Galinhas". A América, como se sabe, é uma ilusão irresistível, e em "A Fuga das Galinhas" ela aparece com o nome de Rocky (na versão não dobrada tem a voz de Mel Gibson). É um garboso galo de criação americana que aterra no galinheiro como salvador. Vai ser o idílio exótico de Ginger. Como se farta de gabar as suas proezas de voador, o coração da franga e o resto do galinheiro elegem-no como líder da revolta e passaporte para a fuga. Nessa altura, Nick Park e Peter Lord lembram-se de "A Guerra das Estrelas", "ET" ou Indiana Jones e flirtam com o imaginário aventureiro dos "blockbusters". Mas Rocky, afinal, é apenas um galo de circo. Voa, sim, mas só quando é atirado para a arena por um canhão. Park e Lord mantêm as suas distâncias, e também não se deixam trair pelo deslumbramento fátuo. Tal como as galinhas, vão ser eles a dominar o processo, amorosamente artesanal, da sua própria batalha.

O galo Rocky pode muito bem ser a DreamWorks, a hipótese que aterrou na Aardman? Deste modo, mesmo produzido por americanos, "A Fuga das Galinhas" permanece tão "tipically british" como as curtas-metragens que celebraram a Aardman e que o cinema Ávila vai repor por estes dias (ver páginas de Antevisões neste suplemento).

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