Fantasia 2000

Caprichos Musicais

"Remake" do projecto mais vanguardista da Disney, "Fantasia", um conjunto de desenhos que eram "animados" por trechos famosos da chamada música clássico-ligeira. "Fantasia 2000" quer ser uma ponte entre passado e presente. Balanço? Não perca "Rhapsody in Blue", mas depois vá para casa ver, em vídeo, a "verdadeira Fantasia". Os milagres não se repetem. No princípio, eram as "Silly Symphonies", a experimentar sobre as possibilidades de conjugar som e imagem, música e animação, com a "Dança dos Esqueletos" (1929) a dar o pontapé de saída. Depois, com o sucesso de "Branca de Neve", contraprova da hipótese da longa-metragem, a ideia da pequena peça ilustrada começou a dar lugar ao sonho do concerto. Faltava o encontro com o maestro Leopold Stokowski, vindo da Filarmónica de Filadélfia, via musical hollywoodiano, com cem músicos e um soprano ligeiríssimo, a inefável Deanna Durbin. Quando o encontro se efectivou, em 1938, arrancou o projecto mais vanguardista da oficina Disney: "Fantasia" um conjunto de desenhos animados que servisse trechos arquifamosos da chamada música clássico-ligeira, o primeiro dos quais era "O Aprendiz de Feiticeiro" do francês Paul Dukas. O protagonista era uma das estrelas supremas do estúdio, o Rato Mickey. Pelo seu papel de pioneiro no projecto, que só viria a concluir-se cerca de dois anos depois, "O Aprendiz" ganha direitos de reposição nesta moderna revisita, "Fantasia 2000", aproveitando o valor quase mítico do original. É assim uma espécie de ponte entre passado e presente, peça de museu, mas também representante de uma qualidade que a Disney, se calhar já não possui: a de inventar na coerência total de uma imagem inconfundível. "Fantasia 2000" pode possuir muitos trunfos, mas dispara em todas as direcções, com desenhadores muito díspares a tornar o que era um bloco indestrutível, no original, em um "pot-pourri" de estilos e de soluções estéticas. Por outro lado, a "Fantasia" bastava a silhueta animada de Stokowski para se ligar à imagem real e ao mundo da música. "Fantasia 2000" não resiste à facilidade do desfile de convidados e apresentadores entre episódios: James Levine, Bette Midler, Steve Martin, Ythzak Perlman ou Angela Lansbury adicionam valor estelar mas destroem a coesão "sinfónica". A ajudar à festa, a abertura, ao som dos acordes iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven, é pobrezinha e repetitiva, enquanto o primeiro "tour de force" com a dança das baleias ao som da música a metro de Ottorino Respighi, "Os Pinheiros de Roma", resulta algo monótona e demagógica, com ecos de conservacionismos descabidos. Igualmente pouco feliz, embora muito "disneyano", no seu lado mais conservador, se torna o conto de Andersen, "O Soldadinho de Chumbo". A magia da indistrinçavel ligação entre movimento e som não passa pela escolha do excerto do Concerto para piano, nº 2, de Dmitri Shostakovitch. O que resgata este "remake", sobrecarregado ainda por informação sobre quais os trechos que Disney gostaria de ter incluído no original, ou por esquissos de Salvador Dali para uma animação que nunca existiu, acaba por ser o genial "Rhapsody in Blue", em homenagem ao universo do grande caricaturista Al Hirschfeld, recreando com um ritmo imparável um dia em Manhattan. Menos denso, embora divertido, é o "Carnaval dos Animais" de Saint-Saens a jogar com flamingos rosa em delírio, de boas reminiscências da Disney: faltam os hipopótamos do original, mas os flamingos "pintam a manta". Não por acaso, é a este episódio que se segue a inclusão do "Aprendiz", precedendo um golpe de sorte e de olho para o negócio, para não dizer de génio: recupera-se o Pato Donald, outra imagem de marca do passado para uma curiosa arca de Noé (Donald e Margarida representam a sua espécie), vogando ao sabor da "Marcha de Pompa e Circunstância", de Elgar. Os encontros e desencontros entre as conhecidas figuras revitalizam a fábula bíblica e reconstituem aquela extraordinária capacidade da Disney para inovar sem mudar. Ao seu lado, o episódio final, com a suite do "Pássaro de Fogo" de Igor Stravinski, esgota-se na perfeição técnica algo estéril e muito longe da tradição do estúdio, mais próximo do "Sonho de uma Noite de Verão" de Reinhardt e de um imaginário quase psicadélico de metamorfoses florais. Diga-se o que se disser sobre a sequência ou sobre a perfeição do desenho, o que fica patente é a pulverização de "Fantasia 2000", face à unidade insuperável de "Fantasia". Para além disso o original inovava, lançava à animação o repto de uma quase abstracção representativa para ler correspondências sonoras. Agora, estamos em terreno sólido, jogando no seguro, com abertura para todos os gostos e com a caução desnecessária de grandes vultos da música e do cinema. Balanço? Não perca "Rhapsody in Blue". Deleite-se com algum humor esparso, mas depois vá para casa ver, mesmo em vídeo, a "verdadeira Fantasia". É que há milagres que nunca mais se repetem.
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