Fumo Sagrado

Tão Pouco Fogo para Tanto Fumo

Kate Winslet vai para a Índia à procura da libertação espiritual; Harvey Keitel, o exorcista, vai atrás dela para a trazer de volta à Austrália. Explodem rituais de amor e dominação. Mas chegarão para resgatar um longo filme da sensaboria prevalecente?

Tempos houve em que a simples nomeação de Jane Campion suscitava todas as expectativas do mundo. Começando com surpreendentes curtas-metragens, incluindo "A Girls Story" e "Passionless Moments" (1984), e iniciando-se nos terrenos mais complexos da longa-metragem, com o bastante óbvio "Sweetie" (1989), história de um conflito familiar de uma jovem a braços com o lado selvagem da sua liberdade individual, a realizadora neo-zelandesa atingia o ponto culminante da sua obra com "An Angel at My Table" (1990) - tríptico construído à partir de uma autobiografia, que usa artificiosamente o corpo de três actrizes para atingir a totalidade de uma personagem retratada no seu doloroso crescimento, toca na essência do mundo representativo de Campion: o feminino em crise, jogado contra barreiras que o indivíduo não consegue claramnete entender e identificar. Se a consagração veio com "O Piano" e com a Palma de Ouro de Cannes, tudo se complicou: à simplicidade quase televisiva (o filme fora inicialmente concebido para a televisão) de "Um Anjo", contrapunha-se uma ficção rebuscada, repleta de efeitos visuais e de sobrecargas simbólicas, para já não mencionar uma forte componente exótica, que estivera cuidadosamente ausente (e ainda bem) dos filminhos anteriores. "O Piano" condenara a obra de Campion a uma pompa que explica a passagem, quase inevitável, para os caminhos da adaptação mais ou menos ortodoxa de "The Portrait of a Lady". Nem a forte carga actuante sobre o tecido romanesco de Henry James, investindo a personagem de Isobel de tintas modernas, impede a sensação de que o olhar liberto de cultura livresca da primeira Campion se academizara, se deixara arrastar, inclusive, para terrenos movediços que não dominava. A selvagem jovem de "Sweetie" ou a indomável ruiva de "Um Anjo" estava domadas num universo híbrido e hesitante. "Fumo Sagrado" vem levantar problemas semelhantes, embora, de certo modo, procurando o regresso ao território de origem: uma jovem que parte para uma Índia de convenção, à procura de uma forte experiência de libertação espiritual, acaba por ficar prisioneira das suas próprias miragens de redescoberta pessoal, sendo resgatada por uma família conservadora, mas fortemente unida, que a traz de volta à Austrália, aos conflitos tradicionais, ao reconhecível espaço, de que quisera "salvar-se". O interessante ponto de partida, que consiste na oposição entre espiritualidade e materialidade, encalha no modo como se filmam as sequências indianas, em superabundância de efeitos, com "trompe loeil" e uma panóplia de psicadelismos para todos os gostos. E, se estes lugares comuns do visual empobrecem a experiência iniciática da protagonista, o regresso a casa não nos poupa igual dose de "déjà-vu" na caracterização da família: uma mãe dominadora, um pai bruto, mas ausente, um irmão fechado no seu mundo próprio. E aqui começa, o mais interessante de "Holy Smoke", uma crónica subreptícia de um mundo primitivo, de um contexto familiar quase pré-histórico, que constitui o território preferencial do olhar de Campion, ao invés das sofisticações europeizantes, que não entende. É na violência dos confrontos entre forças de uma natureza desértica e indomável que as suas personagens fazem sentidos. O aparecimento do troglodítico "caça-gurus", uma espécie de exorcista das espiritualidades superficiais, "ingeridas" na Índia, completa o quadro para a explosão de sensualidade, que vai contaminar o filme. O que fora uma série de superficiais olhares sobre títeres animados vai ganhar autêntica força, quando Harvey Keitel e a assombrosa Kate Winslett (quão longe da bonequinha romântica de "Titanic") se vão defrontar num jogo de massacre e de desejo. Isolados na essência do deserto australiano, perante a exposição dos elementos primordiais, sujeitos apenas ao seu próprio magnetismo animal, o homem e a mulher vão incorporar tensões ancestrais inexplicáveis. E o filme explode em rituais de amor e de dominação, de paixão e de abdicação das mais elementares regras de dignidade humana. Chegará esta violenta catarse para resgatar um longo filme de uma sensaboria quase sempre prevalecente? Não haverá demasiado fumo para tão pouco fogo final?

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