O Furacão

Denzel Washington no papel com que concorreu ao Óscar: o pugilista Rubin "Hurricane" Carter, que esteve na prisão 19 anos, acusado injustamente de assassinato.

É uma história do final dos anos 60 americanos, quando a América explodia em incidentes raciais: um pugilista negro, Rubin "Hurricane" Carter, e um amigo foram condenados a prisão perpétua por terem assassinado três brancos, o proprietário de um bar de New Jersey, a mulher e um amigo.

O pugilista, que, entre 1961 e 1964, teve as melhores prestações do seu palmarés - as derrotas nos ringues foram quase sempre decisões raciais - e que punha a sua celebridade ao serviço da militância, ao lado de Martin Luther King ou de Malcolm X, ficava assim, em 1967, definitivamente impedido de alcançar a sua coroa de campeão.

Rubin sempre clamou a sua inocência, escreveu um livro na prisão que foi um "best-seller" e tornou-se um ícone da contracultura. Em 1974, as testemunhas que o tinham inculpado reconheceriam terem sido subornadas pelo FBI (que vigiava as actividades "subversivas" de Carter), mas isso não foi suficiente para lhe restituírem a liberdade.

Bob Dylan visitou-o na prisão (e gravou "Hurricane", no álbum "Desire", em 1976) e fez "tournées" a favor da sua causa, com Joni Mitchell, Joan Baez e Allen Grinsberg. Candice Bergen pagou a caução para o tirar da prisão, em 1976, quando o Supremo Tribunal de New Jersey considerou, finalmente, que os réus não tinham beneficiado dos seus direitos para se defender. Mas, em Dezembro desse ano, um segundo processo confirmou a primeira sentença. Só em 1985, 19 anos depois, um juiz federal considerou que a segunda condenação tinha sido decidida com graves violação constitucionais, fundadas mais no racismo do que na razão, e ordenou a libertação imediata de Rubin "Hurricane" Carter.

É uma história do final dos anos 60, e parece ser desse tempo que chega "Hurricane", de Norman Jewison, que nessa altura foi um dos veículos dos novos ventos em Hollywood, integrando o contingente liberal que fazia o que podia para dar figuração aos problemas, sociais e raciais, que desagregavam o país.

Foi com o cinema de Jewinson, e de Richard Brooks, Stanley Kramer ou Martin Ritt - filmes hoje datados, razoavelmente paternalistas -, que Sidney Poitier se tornou um actor de primeiro plano na indústria, ícone de um liberalismo possível, amansado, sem crispações, tendo sido o primeiro, e único, intérprete negro a receber um Óscar para o melhor actor. Foi também com Jewinson que Denzel Washigton esteve quase para fazer História, na última decisão da Academia de Hollywood, e seguir na esteira do suave Poitier.

Não são só coincidências. Jewison transforma uma vítima em herói à custa de um maniqueísmo que será politicamente correcto, mas pouco credível. Um filme é um filme, os factos são factos, e a "verdade" é um alvo em movimento. É verdade. Mas as acusações que têm sido feitas a "Hurricane" desde a sua estreia nos EUA (o facto de ter "branqueado" alguns dos aspectos mais "desagradáveis" do pugilista, por exemplo) colhem, na medida em que o simplismo acaba por ser, no filme, o verdadeiro opositor no ringue ao pugilista defendido por Denzel.

O que é que temos? Duas histórias a correrem em paralelo: de um lado, Hurricane, "flashes" do seu passado, como arremedo de biografia (a clássica história da raiva da delinquência juvenil encaminhada para o ringue), e dos seus combates de boxe (a preto e branco, não se percebe porquê, se calhar para lembrar "O Touro Enraivecido", de Scorsese); do outro, o percurso de um jovem negro, iletrado, que leu o livro que Hurricane escreveu na prisão e que vai fazer tudo para interessar um grupo de advogados pelo caso.

O encontro das duas histórias é o momento de transcendência: o ódio transforma-se em amor, no caso de pugilista; as incapacidades e desvantagens raciais em fasquia a ultrapassar depois da tomada de consciência, para o segundo. A minar a exemplaridade da fábula está um vilão, figura inventada, que reúne os vilões da vida de Hurricane e que é personagem de papelão; a apadrinhá-la estão três jovens, que parecem menos advogados ou investigadores do que anjos na terra.

No ringue, e tendo o filme como seu opositor, Denzel Washington é derrotado. Acaba por ser mais um veículo do que personagem de corpo inteiro. Dizer que o actor é a melhor coisa do filme não ajudará muito: soa a prémio por ele ter seguido a dieta do "método", ao passar dois anos a treinar-se em boxe e a emagrecer, porque isso é o que faz um bom profissional quando se prepara para um docudrama. Spike Lee, que permitiu a Denzel outros riscos e ambiguidades em "Malcolm X", poderia dizer, como era (já foi?) seu costume, que este retrato de uma personagem negra está maculado pelo olhar paternalista de um branco. Diríamos só que, mesmo sem a "selva da pele", as boas intenções nunca ajudam o cinema.

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