O embaraço do adolescente

"Nietzsche funciona bem com universitários fresquinhos, e infelizmente não tem muito para dizer a alguém com 30 ou 40 anos." O que o realizador David Fincher quis dizer, numa entrevista à revista "Film Comment" (número Setembro/Outubro), foi que os primeiros estão no processo natural de experimentar com noções complicadas e com implicações éticas e morais, numa espécie de idealismo inconsequente. "Boys will be boys", portanto, os rapazes serão sempre rapazes, e assim um "yuppie" frustrado, que nem tem nome, porque a sua identidade é o "design" que compra (é Edward Norton), cria o seu herói nietzschiano como quem inventa, na turbulência do crescimento, o amigo imaginário (Tyler Durden, e é Brad Pitt). Esse vai ser o seu cavaleiro andante, que vai dar seguimento por ele à raiva que ele, impotente, não canaliza. "Boys will be boys" ainda na fase em que não reparam nas raparigas (há só uma em "Clube de Combate", chama-se Marla e é Helena Bonham-Carter), em que formam clubes só para rapazes e se aproximam do homoerotismo, e em que querem matar o(s) pai(s).

E assim David Fincher, que já tem 37 anos, faz Edward Norton e Brad Pitt adoptarem o "male bonding", a misoginia e a figuração "skinhead", como uma associação secreta de caloiros que não sabem bem no que se estão a meter. Não por acaso, o filme com que Fincher comparou "Clube de Combate" foi "A Primeira Noite"/"The Graduate", de Mike Nichols, relato iniciático sobre aquele momento da vida em que os rapazes têm as hormonas em turbulência e não sabem a que descobertas isso os levará. Isto para dizer que Fincher se deve estar a rir com a polémica que "Clube de Combate" desencadeou nos EUA - acusações de fascismo, por exemplo, e ainda o fantasma da "violência no cinema", sempre levantado quando não se distingue o que um filme mostra do olhar sobre o que mostra. Por outro lado, Fincher não se ri, mas passam-lhe ao lado as perguntas que lhe fazem sobre o "subtexto gay" do filme, como se nunca tivesse pensado no assunto. Na verdade, "Clube de Combate" defende menos um qualquer ideário e junta mais um "cocktail" temático e figurativo como quem brinca com uma bomba. É essa a provocação, para alguns poderá ser a sua cobardia: um filme inconsequente que ironiza sobre a (sua) inconsequência. Fascismo e homoerotismo? Se for de forma incipiente, sim. Fincher chega até lá, mas nada se fixa, tudo recua, volta sempre atrás, quando o risco incendiário começa a ser excessivo. É de admirar - e junta-se nessa admiração a consciência da futilidade lúdica desse gesto do cineasta - o filme colar-se a essa espécie de arrivismo. A "overdose" de informação sonora e visual e a montagem fazem implodir deliberadamente a estrutura narrativa e temporal; nada se fixa, também por aí; "Clube de Combate" corre ao ritmo da confusão e dos fantasmas da cabeça do protagonista, procurando a tradução visual, a "escrita", do fluxo caótico do pensamento desse Edward Norton sem nome que se passeia como turista por grupos de ajuda a cancerosos para conseguir chorar e encontrar aí algo a que possa chamar "eu".

Fincher tem um talento explosivo, se calhar ficará fechado na gaveta dos cineastas "clever", mas redime com a ironia o que é pretensioso no seu cinema. "Clube de Combate" é um brinquedo ou um jogo, um ritual em que rapazes trocam "gadgets" e "private jokes" - assumida contradição, num filme, para ir direito ao "cliché", em que se quer sabotar a "sociedade de consumo"... A "voz off" da personagem de Norton afoga-se em "profundidades" existenciais que se poderiam vestir numa "t-shirt" - o seu calvário existencial fica marcado, a suor, num pano, como se fosse o Santo Sudário de Cristo, o que é uma bofetada grostesca de Fincher. Tyler Durden - o diabrete no corpo de Pitt (ou o diabrete que a cabeça de Norton inventou?) -, para além de fabricar sabões e explosivos com gorduras de lipoaspiração, é projeccionista e gosta de inserir nos filmes que projecta para as famílias alguns fotogramas porno. Fincher também troca galhardetes connosco - descubram-se as imagens subliminares em "Clube de Combate"... - e com a sua própria obra. Veja-se, numa cena de rua, o filme que anuncia um cinema: "Seven Years in Tibet". Esse foi um filme com Brad Pitt - nessa cena de "Clube de Combate" Norton procura, precisamente, Pitt -, mas a palavra chave é "Seven", que foi um filme de Fincher. O cineasta, aliás, tem andado em círculos à volta do núcleo decisivo, que, pelos vistos, é o lugar desse filme na sua obra. Em "O Jogo" havia citações paródicas e em "Clube de Combate" explicita-se o que em "Seven" se insinuava, sem concretização: a duplicidade, a contaminação dos heróis/polícias (Pitt e Morgan Freeman) pelo Mal que investigavam (os crimes do "serial killer"). Sim, o jogo está envolto em angústia de milénio, num manifesto de revolta geracional (a geração a que deram o ícone X) contra o consumo e os grupos económicos que emasculou os homens e a favor da sabotagem desse legado dos pais - Norton tem sido até o veículo dessa específica "agenda", já que, a propósito da sua personagem de "skinhead" em "American History X", também explicava a raiva como o "dead end" a que os "baby boomers" conduziram. Sim, é verdade, mas o olhar de Fincher é o de um farsante. Afinal, "boys will be boys"... Isso significa que um dia, depois da confusão - sexual, inclusive -, o rapaz vai reparar na rapariga. Desde o início que ela lá está em "Clube de Combate". Mas parece um detrito civilizacional, uma ruína gótica. O rapaz viu-a desde o início, cruzaram-se e repudiaram-se, e sempre se pensou que essas sequências eram inúteis, porque o filme era assunto de homens. Só que no último plano Norton - homem, já não rapaz - descodifica o que sente por Marla. Tanto barulho, e afinal "Clube de Combate" é um filme sobre a confusão do crescimento? É o mais desarmante: tantas imagens subliminares, e uma delas, a central do filme, está tão escondida que só se vê no fim. "Boys will be boys" até "boy meets girl". É assim o final de "Clube de Combate": um casal, homem-mulher, a formar-se no apocalipse. É o mais fulgurante plano e o único em que Fincher deixa que na farsa se intrometa o romance - mesmo que ainda lá esteja o embaraço do adolescente.

Sugerir correcção
Comentar