Dois dos actores mais paradigmáticos

Edward Norton é um "yuppie" afundado no vazio. Brad Pitt é um fabricante de explosivos que o leva a uma estranha forma de auto-descoberta, pela dor e pelo terrorismo. Isto, em "Clube de Combate". Fora dele, numa tarde do Festival de Veneza, o PÚBLICO assistiu ao corpo a corpo entre os actores, que falaram de Nietzche, de capitalismo e do logro da televisão.

À nossa frente, dois actores de imagens muito diferentes a encenar uma reconstrução em conjunto, como duas metades de um todo: Brad Pitt mais descontraído, vestido de claro, com uma aura brilhante, a oferecer café, a perguntar se podia fumar, a afirmar o quanto tinha gostado de Portugal e do saboroso anonimato que aqui tinha conseguido, quando por cá passou este ano; Edward Norton, mais tenso e compenetrado das regras que aceitara ao falar de "Clube de Combate" e da sua personagem, encolhido numa "t-shirt" branca, relativamente frágil, sem a impressionante massa muscular que ganhara para interpretar o neo-nazi de "América Proibida". Embora tivesse sido quase sempre Ed Norton a comandar o discurso, numa tarde durante o Festival de Veneza, onde "Clube de Combate" foi exibido, foi Brad Pitt quem iniciou as "hostilidades", declarando secamente que uma das coisas mais subversivas da sua carreira tinha sido a participação neste filme que, sublinha, não tem tanto uma atitude de protesto, "de vingança ou zanga contra a sociedade, mas é mais sobre a frustração, que provoca uma libertação de ansiedades, sobre a procura de uma direcção, de um rumo a que o Eu se possa conformar". E acrescentava: "Se se der demasiada ênfase ao lado exterior da acção deste filme, perdemos o sentido do argumento que se baseia no auto-conhecimento e não na auto-destruição."

Corpo a corpo, contra o vazio O argumento de "Clube de Combate" constrói-se à volta do yuppie em crise (Ed Norton) que, para combater a insónia permanente e o vazio indefinível, frequenta grupos de entreajuda para doentes terminais. Quando esse subterfúgio começa a falhar, conhece (ou inventa?) um fabricante de sabões e de explosivos, Tyler Durnden (Brad Pitt), e é com ele que partilha uma estranha forma de auto-descoberta, pela dor e pela auto-punição: um clube de luta, misto de lugar de culto de uma masculinidade exacerbada e de embrião de um grupo terrorista contra símbolos da alienação do indivíduo. Pitt e Norton, intérpretes, desejam entender essa capacidade de auto-aperfeiçoamento das suas personagens como descida a uma mais depurada relação com o indivíduo, de forma a evitar o vazio, que, esse sim, existe paredes meias com a auto-destruição. Foi Norton quem, mais pragmático, propôs um limite essencial para se falar de "Clube de Combate". "O que o filme diz e o que o protagonista defende são coisas diferentes", antecipando-se, de alguma maneira, às reacções que o filme motivaria na estreia, nos EUA, onde seria acusado de fascismo. Fascinado pelo discurso do "outro", Pitt concordou entusiasticamente, mas desviou a conversa do tom mais filosófico e abstracto que Norton para se deter na transitoriedade das obsessões com as aparências, cirurgias plásticas ou com o valor da moda e das roupas - "a tua identidade não é aquilo que vestes", como diz, no filme, a sua personagem à de Edward Norton. E foi de novo Norton a recentrar a questão da intervenção do filme não numa dimensão política e económico-social (o termo marxista nunca surgiu, embora estivesse sempre latente), mas numa crítica ao sistema de valores do capitalismo. O lado pernicioso do consumismo está certamente num dos lados da balança na definição da personagem de Norton, "fashion victim" com um apartamento que se assemelha a uma revista de decoração e um guarda-roupa que se rege pelo prestígio das marcas - uma felicidade vendida ao domicílio, na síntese feliz e irónica de Brad Pitt. Enquanto a conversa decorria, Pitt ia reagindo ao perigo de desvendar com as perguntas um dos mistérios sobre que repousa o final de "Clube de Combate": o da relação verdadeira entre as duas personagens. Mais uma vez, Norton foi mais longe, de forma mais profunda: "Para mim, o conceito real por detrás do filme baseia-se num processo de progressivo enlouquecimento. Na procura de uma solução de um mal estar existencial, de variadas alternativas, o protagonista encontra, dentro de si, perigosos impulsos. Recusa a versão feminina de si próprio, encarnada por Marla (Helena Bonham-Carter), opta por mais uma violenta pulsão interior, que toma a forma de Tyler (Brad Pitt), e arrepende-se, quando se apercebe que escolheu a mais complicada e potencialmente destrutiva das alternativas. Matar Tyler significa recuar no caminho de um niilismo que parecia irrecusável".

Libertar o espírito da matéria

Norton regressou à sua personagem, e à compra de um estilo de vida "ready-made", às ilusões anunciadas na televisão, fazendo crer que vamos todos ser milionários ou estrelas de rock. Definiu a sua geração como a primeira totalmente criada pela televisão, falou de "meritocracia", uma sociedade baseada no sucesso pessoal e imediato em que os sinais materiais de abundância se revelam como todo-poderosos. Por isso, para ele, a ideia no filme de que a sua personagem atingiu a completude com os objectos perfeitos e as peças de roupa ideais, é a evidência do vazio espiritual do mundo moderno. Quando lhe pedimos para comparar o niilismo da sua personagem com o do neo-nazi de "América Proibida", reagiu, mais uma vez, antecipando as críticas a "Clube de Combate" como um apelo a uma estética fascizante. E insurgiu-se contra o facto de se culpar a filosofia de Nietzshe de desvios operados no século XX: "O intuito de Nietzshe era libertar o humano e só uma perversão destas ideias pode permitir ligá-lo aos fascismos. Por outro lado, o niilismo, se quisermos chamar-lhe assim, do filme e de Tyler não é obrigatoriamente negativo, porque convida a um despojamento da cultura e da convenção, para libertar o espírito das limitações da matéria". "América Proibida", então, constituiria a hipótese de uma tragédia contemporânea, em que a queda do herói trágico possibilitara uma lição, ou o acesso a uma catarse. "Clube de Combate" seria mais metafórico e surreal, apostando na extrema ambiguidade, até porque o protagonista aparece como uma espécie de "todo-o-mundo" geracional, que coloca a tónica na forma como se deve lidar com o vazio interior e com o sentido do desajustamento. E, no final, lançaria a solução definitiva "para o colo da audiência", obrigando-a a decidir se quer ou não partilhar a ideologia apresentada. Filme aberto ou perigosa fábula totalitarista, "Clube de Combate" sustenta-se na química entre dois dos actores mais paradigmáticos do cinema americano contemporâneo.

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