Numa "galáxia muito, muito distante"

Há muito, muito tempo, numa Hollywood muito distante, Francis Ford Coppola vaticionou que se "A Guerra das Estrelas" fosse bem sucedido, o cinema americano iria perder um dos seus mais arrojados cineastas, George Lucas. Nessa altura, Coppola era o guru de um então jovem cineasta com pretensões "underground", que até se tinha estreado com uma obra de ficção científica razoavelmente esotérica ("THX 1138", em 1971), mas que estava à beira de revolucionar a indústria com um "filme para miúdos". Na América dos anos 70, desiludida com o Watergate e com o Vietname, Lucas pensava "em toda uma geração que estava a crescer sem contos de fadas" (e que estava a invadir as salas de cinema) e recriou para ela o casulo protector que tinha sido a sua infância nos anos 50.


Pôs esse caldeirão de mitologia e de sonhos que alimentaram a sua infância (através dos velhos "serials", dos "comics", da série Flash Gordon ou da dupla Laurel & Hardy, que inspirariam dois bonecos de lata chamados C-3PO e R2-D2) ao serviço do "merchandising", e foi também essa a revolução. A verdade é que, alguns anos antes desse "há muito, muito tempo", o adolescente Lucas tinha sobrevivido a um desastre de automóvel e isso tinha-o deixado investido de uma missão: abandonar os seus anos de "teen rebel" e "ir a direito", fazer algo da vida. "Vou ser milionário antes dos 30 anos", resumiu ao pai, conservador e dominante. E foi assim que, em 1977, Lucas se transformou em Luke Skywalker e o pai em Darth Vader, numa "space opera" concebida para se desenrolar nas estrelas em três trilogias.

Sabe-se o que aconteceu: Lucas subiu tão alto que se cansou, retirou-se para o seu rancho para construir a Industrial Light & Magic, passou a outros a tarefa de continuar os episódios iniciais ("O Império Contra-ataca", de 1980, e "O Regresso de Jedi", de 1983), foi testando os avanços tecnológicos da sua empresa (por exemplo, a série televisiva O Jovem Indiana Jones) e depois do trabalho para "Parque Jurássico", de Spielberg, considerou que, dezasseis anos depois do último filme da primeira trilogia, havia condições para voltar a "Star Wars". E regressar ao início, com o primeiro episódio de uma nova série que, em termos cronológicos, é anterior à que se estreou nas décadas de 70 e 80. "Há muito, muito tempo" significa, agora, que Darth Vader ainda é um rapazinho desprotegido e solitário e Obi-Wan Kenobi é um jovem cavaleiro Jedi. Ao ver "Star Wars: Episódio 1 - a Ameaça Fantasma", lembramo-nos também do princípio.

Das palavras de Coppola, por um lado, e das próprias palavras de Lucas: "Qualquer talento que eu tenha, tem que ver com o estar sintonizado com a sensibilidade das massas. O meu talento não é, particularmente, fazer filmes." As "massas" não são as mesmas, hoje, por isso este "princípio" não pode ser igual ao de 1977, quando explodia em candura e entusiasmo a cinefilia dos "movie brats". "Em termos de contador de histórias, ele é um americano primitivo; em termos de tecnologia, ele é um americano sofisticado", disse também alguém sobre Lucas.

A dualidade descreve qualquer personagem da saga "Star Wars", onde tudo se processa por jogos de duplos e de opostos (como o conservadorismo e a cautela do estratega Lucas se opõem ao visionarismo suicidário do ex-mentor Coppola), mas onde também o Bem integra o Mal (como Lucas, um "miúdo de 70 anos", integrou, até na desconfiança moral que mantém em relação a Hollywood, o que detestava no pai, o seu Darth Vader pessoal). Ora, em "A Ameaça Fantasma" o segundo pólo da dicotomia, a tecnologia, ocupou o todo. Não há nada tão orgânico e simultaneamente tão inocente como havia em "A Guerra das Estrelas".

E se aí Harrison Ford, Mark Hammil ou Carrie Fischer apareciam com um registo deslocado, desconcertantemente próximo das convenções da série B dos anos 30 e 40, o desconforto e a rigidez de Liam Neeson (Qui-Gon-Kim) ou Ewan McGregor (Obi-Wan Kenobi) - visíveis e bastante confrangedoras - devem-se mais ao facto de ambos estarem a representar no estúdio para cenários vazios que seriam depois preenchidos com efeitos especiais. A Força, definitivamente, não estava com eles.

Com dois mil planos com efeitos digitais - 95 por cento do filme -, "A Ameaça Fantasma" sai directamente dos jogos de computador. Mesmo a cinefilia (a sequência das corridas, que vem de "Ben Hur", ou a apoteose final, que parece a entrada de Elizabeth Taylor em "Cleópatra", de Mankiewicz, num "kitsch" plastificado e domado) é apenas uma operação de colagem. George Lucas, 55 anos, sabe-o e tem-o assumido em várias entrevistas: fez o filme para uma geração que não é a mesma que delirou com "Star Wars" e correu o risco de a alienar. Esses, gente que andará hoje nos 30 anos, ao protestarem a sua decepção contra duas das personagens do filme, Jar Jar Binks e o vilão Darth Maul (o primeiro, "alívio cómico", "digitalizando" a irreverência irritante dos "sketches" de alguns comediantes negros americanos; o segundo, um ridículo arabesco a partir da silhueta de um praticante de artes marciais), estão apenas a manifestar uma perda e uma impossibilidade de reconhecimento. Entre outras coisas: que não existe nenhuma personagem de "carne e osso" - muito menos o bestiário digital - com que se possam relacionar. Ao regressar ao início, para começar a explicar a saga, "A Ameaça Fantasma" acaba por lhe ser, frustrantemente, exterior. E com todas as possibilidades tecnológicas, o fantasma que ameaça este filme é a neutralização do espectáculo, por "overdose". Perdeu-se um imaginário.

Hoje, George Lucas pode dizer, como o disse, que a saga de "A Guerra das Estrelas" já "não é uma questão de paixão. A minha paixão são os filmes. Sou mais fã dos filmes do que fã de A Guerra das Estrelas". Há qualquer coisa de libertação, sim. Ele libertou-se do peso, mas com isso também se foi a emoção. Depois deste primeiro episódio, os próximos dois filmes continuarão a contar a história do jovem Obi-Wan Kenobi e de Darth Vader, o pai de Luke - sendo que o percurso do jovem Anakin Skywalker e a sua deriva até se tornar na figura de negro é uma espécie de refrão musical que repete o percurso de Luke Skywalker na trilogia já conhecida. O segundo filme "será uma história de amor", o terceiro "será mais negro, uma tragédia, em que as personagens principais serão Yoda, Obi-Wan Kenobi, Anakin e a Rainha Amidala", explicou Lucas.

Daqui a 10 anos, vão poder ver-se os seis filmes, ficando para já nos domínios do sonho a concretização dos episódios sete, oito e nove - que contaria a vida de adulto de Luke Skywalker. Foi em tempos, "há muito, muito tempo", que as letras subiram no genérico dos ecrãs de cinema para contar uma história numa "galáxia muito, muito distante".

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