O Caso de Thomas Crown

Na história da indústria hollywoodiana, o "remake" possui múltiplas lógicas e funciona, muitas vezes, segundo interesses conjunturais: a recuperação de material subvalorizado, investindo-o com carga estelar como na transformação do rigoroso "Uma Tragédia Americana", de Von Sternberg, no carismático "Um Lugar ao Sol", ou a manutenção de um género como nos melodramas de John M. Stahl ("Magnificent Obsession" e "Imitation of Life"), que Douglas Sirk "pintou" em glorioso "technicolor"; há o jogo controlado de diferenças, a determinar o regresso de Hitchcock a matrizes do passado, com outros meios financeiros e estilísticos, no caso de "O Homem Que Sabia Demais" e há o recente uso de "Psico" para rasurar o original e lhe inscrever o mesmo, radicalmente diferenciado. Poderíamos continuar a lista à exaustão, se no caso vertente não merecesse especial atenção uma particular convergência de elementos. "O Caso Thomas Crown" baseia-se num grande sucesso do passado, que nunca atingiu o estatuto de clássico incontornável, sofre a necessária metamorfose que o autonomize e estabelece com o original uma relação especular de divertimento "a partir de". Estabelecidos os objectivos fundamentais, em que se inclui a segurança para delimitar a imaginação transbordante de um cineasta algo incómodo como McTiernan, contendo-a nos estritos parâmetros de um modelo, passa-se ao esboço das regras. A primeira consiste em evitar a tentação de encontrar um correspondente para o inimitável humor sardónico de Steve McQueen. A segunda regra elabora sobre a diferença de pormenor, tornando-a de fundo, e assim o glamoroso assaltante de banco (McQueen) dá lugar ao fleumático ladrão de quadros famosos (Brosnan). A terceira regra obriga a rejeitar as imagens de marcas do original, cortando o célebre jogo de xadrês e simplificando a parafernália de efeitos do filme de Jewison, conhecido pelo uso de ecrãs múltiplos e por uma visualidade "prêt-à porter", típica dos anos 60. Em 1968, data de "O Grande Mestre do Crime" (assim se chamou entre nós a primeira versão de "The Thomas Crown Affair"), a escolha de Steve McQueen e Faye Dunaway era significativa: ela acabara de explodir em "Bonnie e Clyde" e transformara-se na coqueluche da nova geração; ele estava no apogeu da sua carreira, começada dez anos antes, em lenta progressão, só atingindo o estrelato em 1963 com dois papéis inesquecíveis em "Amar um Desconhecido", ao lado de Natalie Wood, e em "A Grande Evasão" a chefiar um elenco de luxo. Depois de 1968, também o ano de "Bullitt", começou uma espécie de declínio que nem o sucesso do pavoroso "Papillon" (1973) ou a genialidade de "Tiro de Escape" (1972) de Sam Peckinpah conseguiram inverter. O "remake" joga com outra lógica de distribuição, escolhendo duas vedetas de "meia-idade", para acentuar um lado serôdio de amores outonais. Por outro lado, Pierce Brosnan carrega consigo o peso da personagem de James Bond e Rene Russo, ex-parceira de Clint Eastwood, Mel Gibson ou John Travolta, confere à sua personagem uma maturidade emocional, que contrasta com a truculência do seu envolvimento na trama policial. O que resta, portanto, para além das quarentonas estrelas, como esqueleto da nova ficção? Uma história de sucesso e "spleen": um multimilionário engendra um mirabolante plano para roubar um quadro de Monet só pelo prazer de correr o risco e assim afrontar o tédio. Uma investigadora cola os pedaços do quebra-cabeças, descobre o autor do crime, mas apaixona-se por ele. Tudo extremamente simples e previsível, apenas resta a magia do cinema: McTiernan preenche o vazio do que poderia resultar num exercício de estilo com rigorosíssima "mise-en-scène" e inultrapassável sofisticação. Desde o início, a câmara explora todos os espaços, traçando um mapa da acção, fazendo da sala do museu um inesgotável palco e da casa do protagonista um labirinto de reconhecidos caminhos. O "timing" perfeito, equilibrando montagens paralelas e permitindo às sucessivas peripécias uma duração exacta (Howard Hawks é o mestre de McTiernan), culmina numa belíssima sequência, a lembrar apropriadamente Magritte, com a multiplicação dos homens de chapéu de coco e a metamorfose de um quadro noutro, como num passe de mágica. Assim, o que no original não passava de um vulgar filme de acção, assume a dimensão de um prodigioso divertimento musical, aproximando-se da auto-ironia hitchcockiana, até pelo modo como Brosnan cita a descontraída fleuma de Cary Grant em filmes como "Ladrão de Casaca" (matriz subterrânea de todo o filme) ou "Intriga Internacional". Mas o descontrolado humor do cineasta não se esgota nesta vénia ao mestre, vampiriza igualmente o filme de Jewison da forma mais inesperada: não só usa a oscarizada canção de Michel Legrand, "The Windmills of Your Mind", no genérico final, como a vai dissolvendo na acção, a começar na cena do baile; cria uma personagem nova, a de uma psicanalista, a quem supostamente o protagonista contaria as suas aventuras, e entrega-a a Faye Dunaway, "a Rene Russo" de "O Grande Mestre do Crime". A simples existência desta figura coral, premonição de uma idealização do espectador dentro da ficção (em narratalogia, chamar-lhe-íamos o narratário), confere uma densidade outra à narrativa, obrigando a reler uma outra novidade do "remake", a personagem da falsária, responsável pela extraordinária sobreposição de falsas expectativas: pólo potencial dos ciúmes da heroína, determina a "traição" desta e assina os incontáveis "trompe-loeil" do filme. Nunca sabemos qual o original, qual a cópia. Assistimos à destruição de um Renoir, à transformação de um Pissarro num Monet (ou de um "McTiernan" num Magritte), com o deslumbramento de uma criança que assiste a um espectáculo de prestidigitação. Numa das sequências supremas do filme, embarcamos numa cena paradisíaca de melodrama, sempre à beira da explosão dos sinais. O mais genial deste "O Caso Thomas Crown" passa, aliás, por este tipo de contaminação: o filme assume-se, ele-próprio, como original e como cópia, como obra-prima e como "pastiche", como objecto de consumo e como reflexão metaficcional. Ou seja, os caminhos da pós-modernidade ainda passam pelo cinema industrial americano, Surprise, surprise...

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