A saborear sempre com cuidado

"Conto de Outono", que fecha o ciclo de Rohmer dedicado aos Contos das Quatro Estações, centra-se sobre a amizade entre duas mulheres, interpretadas por Marie Rivière e Béatrice Romand. O Outono figura a maturidade das relações e a força telúrica da terra: entre o ligeiro agitar das folhas das árvores, o sabor do bom vinho e o prazer da mesa não existem os excessos da paixão. São folhas caídas de uma imaginária árvore do amor, para a recomposição eterna das relações.Depois da ligeireza exposta do "Conto de Verão", centrado na inconsequência do sentimento e na transitoriedade do tempo e do amor, Eric Rohmer fecha o seu novo ciclo dos Contos das Quatro Estações com a figuração do Outono, perto da maturidade das relações, do lado da força telúrica da terra, mas ainda no registo que informa toda a tetralogia, o de explanação de jogos do amor e do acaso.
Esta coordenada lúdica estabelece, aliás, as necessárias pontes com a anterior obra do realizador, com os Contos Morais, que desenvolviam e actualizavam a tradição francesa de finais do século XVIII, tomando universos como o de Diderot enquanto referente distanciado, ou com Comédias e Provérbios, denominação pedida emprestada a Alfred de Musset, poeta e dramaturgo romântico, cuja peça "On Ne Badine Pas Avec l Amour" prefigura na perfeição o mundo rohmeriano de sofisticação e de pretensa gravidade.
"Conto de Outono" centra-se sobre a amizade entre duas mulheres, Isabelle e Magali, interpretadas respectivamente por Marie Rivière e Béatrice Romand, actrizes bem conhecidas da anterior obra de Rohmer. Este reconhecimento arrasta uma conivência com o "déjà vu", sobre o qual se constrói este "filme único", feito de muitos tomos e de muitas variações, que o cineasta persegue no rasto do seus modelos, o já citado Musset e, sobretudo, Marivaux, o dramaturgo barroco, autor de "O Jogo do Amor e do Acaso" e de "Dupla Inconstância". Tomando por pretexto um casamento, encena-se o reencontro de Magali com o amor: Isabelle põe um anúncio e serve de substituta, e depois de intermediária, num romance entre a amiga e um homem divorciado cuja resposta lhe pareceu possível. Ao longo do filme, esta dimensão de possibilidade vai constituir a chave de uma coreografia de avanços e recuos, pautados pelo imponderável e pela serenidade de um Outono mediterrânico.
Com efeito, o cenário para este conto resulta tão importante quanto a escolha de amorosos outoniços, interessados na regeneração quotidiana do sentimento adormecido. No esplendor da Provença, entre o passado agrícola e o presente industrial, assistimos ao cortejo dos pequenos espectáculos da natureza: a plenitude do fim do Verão, com o calor a maturar as uvas e a forçar a queda das primeiras folhas; o tempo das vindimas a marcar o ciclo da vida e a rimar com a "rentrée", regresso às aulas (dos mais jovens, usados em contraponto e em prolongamento das personagens principais) e aos hábitos de uma vida sedentária, perto das raízes e das árvores, das videiras e das ervas parasitas. O encontro entre Magali e o seu "pretendente" passa também pelo passado ligado ao vinho, ela viticultora (adjectivo erudito para uma profissão com poucas tradições no feminino), ele filho de vinhateiros, ambos "pieds-noirs", oriundos dos restos do Império francês do Norte de África, já nomeado sem as feridas da geração anterior, mas ainda colocado sob o signo de uma nostalgia mansa do irrecuperável.
Esta nostalgia envolvente e docemente crepuscular constitui outra das palavras de ordem da ficção. O ligeiro agitar das folhas das árvores, o sabor do bom vinho, o prazer da mesa e a memória dos amores mortos servem de pano de fundo a esta história sem grandes comoções, em que o futuro se afronta com a clareza da planificação. Em "Conto de Outono", o excesso da paixão não existe, substituído por um sábio conhecimento do fim das coisas do coração: Isabelle prossegue a morna segurança do seu casamento, Magali aceita a hipótese possível de um amor serôdio, os filhos de ambas aceitam o casamento ou o namoro como o cumprimento de um ritual antigo. A jovem namorada do filho de Magali, saída de uma relação complexa com um homem mais velho, seu antigo professor de filosofia, vai mesmo mais longe, também ela interessada em "libertar-se" do ex-amante, entregando-o a uma mulher mais velha e madura: há uma espécie de cinismo no modo como se arquitectam os mecanismos de cortejar e de preferir. E em Rohmer, são muitas vezes as mulheres que dominam o jogo. Em "Conto de Outono", em especial, os homens parecem fracos e manipuláveis. Em todo o processo, a fixação fotográfica joga um papel fundamental, aproximando o olhar do objecto e configurando a imagem que se quer apresentar. Por fotografia se apresenta Magali aos seus dois "pretendentes", por fotografia se tenta domar os seus cabelos rebeldes, soltos para uma liberdade de conduta, que ela própria traçou. Ao contrário da amiga, loira, de cabelo penteado, Magali, morena, incorpora na sua desistência do amor uma cabeleira hirsuta, livre como as vinhas ou as ervas suas companheiras. A fotografia como o espelho determinam as marcas do tempo e da idade, com que se tem que contar. Vestir-se para assistir ao casamento e cumprir os rituais de encontro, que lhe haviam destinado, representa para Magali uma cedência calculada, que funciona de forma dúplice: enquanto rejeita institivamente o professor de filosofia, porque conhece a "armadilha" montada para o aproximar dela, deixa-se cativar pelo desconhecido que, no entanto, sabe de cor o papel que lhe cabe. De todos estes jogos com os fios à mostra, retira Rohmer a força decisiva dos seus seríssimos divertimentos, com diálogos precisos e uma "mise-en-scène" minuciosamente desenhada. Apresentando personagens adultas e maduras, como folhas caídas de uma imaginária árvore do amor, para a recomposição eterna das relações, Rohmer fecha em "andante ma non troppo" a sua sinfonia de câmara em quatro andamentos, com a simplicidade das evidências e o gosto evasivo de um bom vinho velho. A saborear sempre com cuidado.

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