Gato Preto, Gato Branco

Depois de ter anunciado que ia renunciar ao cinema, Emir Kurturica resolveu começar de novo. Com o entusiasmo, a euforia e a inocência de uma "primeira vez". "Gato Preto, Gato Branco", o prémio de realização do último Festival de Veneza, lança três geração de ciganos num baile desenfreado nas margens do Danúbio. Figuras humanas, movimentos de câmara e animais estão em permanente acrobacia. A solidão dos fora-de-lei ? ele assume-a ? é uma evidência quase física, transpira, no caso de Emir Kusturica, qualquer coisa de brutal. Como se a irracionalidade estivesse só em repouso. Gosta de lembrar que um dia, em 1981, quando Veneza aclamou "Recordas-te de Dolly Bell?", a "Time" americana escreveu: "The winner is nobody from nowhere." Dezassete anos depois, Emir Kusturica chegou a Veneza com "Gato Preto, Gato Branco", prémio de realização no festival, querendo assumir isso mesmo: que era "ninguém" e de "parte nenhuma". Como se fosse o seu primeiro filme, como se nunca antes tivesse sido assim. É, de novo, tempo de ciganos, mas é a primeira vez desta forma vital. É um filme de "primeira vez". Sem negrume, como acontecia nessa obra terrível chamada "Underground" (1994), explode o gozo puro de cinema. Os momentos desenfreados de anteriores obras tomam conta de todo o filme; a música suga e pontapeia para uma permanente acrobacia figuras humanas, movimentos de câmara e animais. "É preciso ser entusiasta, infantil, saber brincar, sempre. Não sou cínico; quando se é cínico, isso significa que se está a chegar ao fim. Depois de ter decidido, em 1994, que não ia fazer mais filmes, resolvi começar de novo. E, sendo assim, queria começar como se fosse alguém que nunca tinha feito um filme: com energia, entusiasmo. Não sou muito racional, quando faço filmes, e, de sala para sala, mudo de perspectiva, vejo o filme de maneira diferente. Mas penso que, cada plano de ?Gato Preto, Gato Branco?, tem um nível bastante elevado de energia. A cada dez minutos o filme está à beira do colapso e, de alguma maneira, consegue levantar-se e continuar. É assim a minha tensão arterial."

"Porque o cinema existe"

É verdade: Emir Kusturica anunciou que ia abandonar o cinema. Com "Underground" o cineasta de Sarajevo foi considerado "traidor" pelos seus compatriotas e a intelectualidade europeia ? concretamente Alain Finkielkraut e Bernard Henri-Lévy, filósofos ? acusou-o de estar a fazer "propaganda pró-sérvia". "Considerei-me vítima de um anátema em França e na Alemanha. Mas cansei-me desse sentimento e percebi que o cinema é uma parte vital em mim. Porque o cinema existe." E assim, com o orgulho de quem anda a mostrar os filmes favoritos que tem debaixo do braço ? "A Regra do Jogo", de Renoir ou "L?Atalante", de Jean Vigo, mas também "Zéro de Conduite", de Vigo, ou "À Beira do Mar Azul", de Boris Barnett ?, Emir Kusturica, um nostálgico confesso da utopia dos "cineastas e do cinema do passado", deixou-se convencer pelos seus colaboradores, que viam a sua renúncia como catastrófica. Feito o trabalho de sedução, o projecto para o regresso começou por ser um documentário para a televisão alemã sobre a música dos ciganos. Ia chamar-se "Musika Akrobatika". Mas Kusturica começou a ter visões. "Inspiro-me nos livros que leio, nas pessoas e nas histórias que elas contam. Histórias tão fantásticas como as da literatura sul-americana. Estamos a falar de um território, a Jugoslávia, onde o paganismo está muito vivo. Os milagres acontecem todos os dias." Começou então a orquestrar-se uma dança de gerações nas margens do Danúbio, com avôs moribundos que morrem e renascem e conhecem de cor os diálogos de "Casablanca", com jovens apaixonados e com despiques pícaros entre pequenos e grandes criminosos Nascia a ficção "Gato Preto, Gato Branco" ? a origem documental teve consequências, já que os papéis foram entregues a não profissionais e cada uma das várias histórias anula o seu protagonismo em favor do turbilhão orgulhoso da fábula ?, o título mudou, mas, perante a apoteose daquilo que se vê, se ouve ou se sente, podia continuar a chamar-se na mesma "Musika Akrobatika". O título só pecaria por defeito, nunca por excesso. "Este filme podia ser sobre outra coisa qualquer e não sobre ciganos. Mas adoro um certo sentimento aristocrático e medieval que os ciganos têm. Não tento aproveitar-me dessa bizarria; o que tento, desde o meu primeiro filme, é tornar os pobres mais aristocráticos numa altura em que os ricos estão a ficar cada vez menos aristocráticos." O que às vezes também se diz, e isso desde "O Tempo dos Ciganos" (1989), é que Kusturica, que cresceu num bairro de Sarajevo vizinho de um acampamento cigano, vem fazendo festivais de folclore e iconografia. "Não tenho que salvar ninguém com os meus filmes. Querer salvar as personagens é um propósito ideológico ou um ?slogan? humanístico de que desconfio... Adoro ciganos, fiz vários filmes com eles, tenho entre eles alguns grandes amigos com quem me encontro em períodos difíceis da minha vida. Mas, quando se faz um filme, é-se absolutamente livre. Os filmes não mudam a vida das pessoas. Torna a vida humana melhor, mais leve, isso acredito. Basta-me ver a cara das pessoas com quem trabalho, como elas ficam felizes quando se vêem no ecrã e se identificam ? estão-se a ver como heróis."

Vinho tinto e brandy

Talvez porque a véspera deste encontro com o PÚBLICO, o dia em que "Gato Preto, Gato Branco" teve recepção apoteótica em Veneza, deu origem a uma evidente ressaca, quando fala em Fellini, uma das suas paixões, Kusturica concorda que "é certamente a referência". "Mas numa frequência diferente, porque Fellini é o mais belo dos vinhos tintos e eu gosto de beber um brandy forte." Não é só devido à ressaca que Kusturica poucas vezes se ri, nunca quando lhe fazem um elogio. Certamente que não se ri quando está a chegar a conclusões felizes ? "Tenho a sorte de ser um cineasta sem problemas para conseguir arranjar dinheiro para os filmes" ?, porque isso poderia passar por modéstia. A verdade, também, é que o tom não se altera de forma relevante quando mostra as (suas) razões para se sentir acossado. "Gato Preto, Gato Branco" é um filme feliz. Mas essa felicidade é um refúgio e existe para ser contraposta. "Estou feliz, apesar de vocês...", parece dizer Kusturica. Ninguém pode acreditar que este "começar de novo" é isento de ironias ou rancores. Veja-se como o tom não se altera, mas o fluxo de palavras é quase imparável. "Nasci em Sarajevo [Bósnia], mas sou sérvio. Isso faz de mim um traidor? Qualquer pessoa pode escolher a bandeira sob a qual quer viver. Tenho um nome muçulmano, mas não sou muçulmano. Os líderes bósnios queriam que eu fosse uma extensão da ideologia deles, o que nunca aceitei. A ideologia interferiu com os direitos individuais. A administração do senhor Alija Izetbegovic [presidente bósnio] deslocou uma questão ideológica para o campo dos direitos individuais: considerou-me traidor por não ser suficientemente muçulmano. Depois dos acordos de Dayton destruiu as casas da minha família, invadiu-as. Falaram de mim na televisão como se eu fosse um monstro que devorasse pessoas. Era muito eficaz e necessário, ideologicamente, fazer de mim um espécie de símbolo da ex-Jugoslávia. A diferença entre mim e as pessoas que estão à frente de Sarajevo, hoje, é esta: o único lugar etnicamente misto é a actual Jugoslávia [Sérvia e Montenegro]. Todos os outros lugares estão limpos etnicamente." "Vivo agora em Paris, a minha mãe tem uma casa no Montenegro e tenho um barco onde passo algum tempo a viajar. Durante vários anos, vivi num barco. As pessoas em França gostam de mim e do meu trabalho, excepto um grupo de ?soixante-huitards? que se vão transferindo de sistema político para sistema político: ontem eram maoistas, hoje são ?chiraquianos?, o que quer que seja para os manter visíveis na televisão. O vencedor do prémio de realização do último Festival de Veneza, com "Gato Preto, Gato Branco", foi "ninguém" de "sítio nenhum". Emir Kusturica. "O meu nome quer dizer ?Príncipe?!" Emir. Da Jugoslávia? "Europeu, internacional para mim serve."

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