Gato Preto, Gato Branco

Emir Kusturica construiu com "Underground" (1995) um requiem por uma pátria em ruínas e parecia ter enveredado por um caminho sem regresso de um luto irónico pela loucura do esfacelamento e do fratricídio. Antes, o seu olhar traçara cortes no imaginário balcânico com "Lembras-te de Dolly Bell?" (1978) ou "O Papa Partiu em Viagem de Negócios" (1985), meditações cifradas sobre a inventada república dos eslavos do Sul, uma Jugoslávia que o tratado de Versalhes criara sobre os despojos do Império Austro-Húngaro, depois da Guerra de 1914-1918. Com "O Tempo dos Ciganos" (1989), o cineasta atingira um dos pontos culminantes do seu percurso representativo, ainda que preso a um certo folclorismo, em busca do desequilíbrio mágico que lhe permitisse captar o sonho por detrás do fascínio do real. Neste percurso, a aventura americana de "Arizona Dream" (1993), manifestamente menor, faz figura de "outsider", apesar de se poderem traçar curiosas rimas temáticas e estilísticas com a restante obra, anterior e posterior. "Gato Preto, Gato Branco" revela a capacidade de recomeçar, de reinventar um quase grau zero da energia criativa e da inocência autoconsciente, permanecendo coerente com um universo de barrocos excessos e de contraditórios esplendores. Junto ao "sagrado" rio Danúbio um pai e um filho dão assistência aos barcos que passam e envolvem-se em todo o tipo de pequenas traficâncias. Das suas aventuras e das suas pequenas transgressões, passamos a uma rede de prazenteiros escroques, a uma cómica (e mágica) Mafia cigana, misturando o mercado negro com a desmesura da festa permanente. Desde as primeiras imagens, perpassa pelo filme a perturbação surrealizante de "Underground", mas também a intensa serenidade de quem superou a ferida aberta da Guerra Civil e a obsessiva necessidade de instituir o grotesco como obrigatória marca de distanciamento cínico. E, se existe um reenvio para "O Tempo dos Ciganos", opera-se uma profunda alteração no âmbito do olhar sobre a estranheza e a bizarria dos comportamentos: o arsenal de irrisórios contrasensos está ao serviço de um controlado domínio dos materiais. O assombroso bestiário do filme, começando nos complementares gatos do título e prolongando-se nos omnipresentes gansos, "exército" branco de oscilante energia, confere ao texto fílmico uma alegria animal que extravasa do ecrã e amarra o espectador ao carnavalesco espectáculo da fúria de viver. Especialmente marcante se torna o modo como Kusturica instrumentaliza a cinefilia para dela fazer um poderoso meio de reformular o seu olhar sobre a modernidade. Um dos referentes mais óbvios passa pela revisitação a "LAtalante" de Jean Vigo, desde logo pela encenação do tráfego no rio, mas também pela ritualização de casamentos e desencontros, com a citação explícita do plano recuperado para a versão restaurada do clássico francês, o de Jean Dasté abraçado ao bloco de gelo, metáfora de solidão, na angústia da ausência do ser amado. O seu uso em "Gato Preto, Gato Branco" dá bem a noção do tipo de homenagem que se pretende, irónica e explosiva: o gelo conserva os mortos, preparando a fabulosa ressurreição final e acaba por destruir o cenário, subvertendo as aparências. No entanto, outras marcas da inscrição de diferentes mundos de celulóide se fazem sentir, desde a bem sinalizada cena, de "Casablanca" (repetida no vídeo e, depois, deformada pelo sotaque), a determinar a grande amizade dos dois velhos chefes de clã, até às subtis remissões para os requintados formalismos do realismo soviético, com o rosto da jovem e loura protagonista a lembrar semelhante encarnação do feminino em "À Beira do Mar Azul" de Boris Barnett, fazendo da sequência do gelado, entre os prazeres do contacto com a água do rio (um primor de simplicidade), e do elíptico acto de amor, com o par imerso no campo de cereais, a dimensão panteísta deste caleidoscópio vertiginoso de imagens e sons. Não menos fundamental se revela a influência do imaginário felliniano, quer por meio da atmosfera circense, quer pela maneira como se incorporam extravagâncias fisionómicas ou distorções físicas: a cantora que arranca o prego com o rabo, o velho agarrado à cadeira a regar as flores, ou, supremo contraste pelo absurdo, o encontro entre o gigante e a diminuta noiva em fuga (inversa citação "Seven Chances" de Keaton?), a remeter em filigrana para "Amarcord", do qual se aproveita também a reminiscência da imagem do mítico barco, não o transatlântico de Fellini, mas um caricatural "barco do amor", à medida da ficção fluvial. Claro que também não andam longe toda a contagiante inventividade do burlesco americano (a cadeira que sai do carro e acaba no rio ou a perseguição à noiva "disfarçada" de caixa de cartão e, depois, de tronco) ou a terrífica visão monstruosa do mundo de "Freaks" de Tod Browning. O essencial é entender como Kusturica se apodera de toda essa pluralidade de elementos para os fundir num pessoalíssimo cristal de inacreditável brilho. Entre o rigor do documentário e a mais descabelada narrativa de rivalidades, amores e pequenos crimes quotidianos forja-se, pois, esta dança eterna e universal dos elementos, arrastando na sua vertigem os comparsas humanos que lhe dão corpo. A festa do mundo escolhe para teatro das operações a serenidade imutável do Belo Danúbio Azul, como se a desesperada jangada de terra de "Underground" tivesse lançado âncora na perenidade do rio que não pára de correr.

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