Pequenos Guerreiros

Quando um adolescente, numa pacata cidade americana, abre uma caixa de bonecos guerreiros, é declarada a batalha entre os brinquedos. Que roubam a pose ao General Patton, voam de helicóptero como em "Apocalypse Now" e regurgitam frases de John Kennedy para as cuspir. Cinema de "bricolage" com a anarquia da série B, por Joe Dante. Na altura em que Steven Spielberg estava encadeado pelo maravilhoso, pela luz, e incentivava outros a ocuparem-se da escuridão, não podia deixar de reparar num apaixonado pelo fantástico e pela BD que deitou cá para fora um "pastiche" de "Tubarão" (1975) chamado "Piranhas" (1978). O seu nome era Joe Dante, vinha da série B, do mundo paródico de Roger Corman onde se ocupava de "traillers", filmes-anúncio, e da montagem. A partir desse momento passou a fazer parte do planeta Spielberg, que lhe havia de confiar um episódio de "The Twilight Zone ? The Movie" (83) e um filme intitulado "Gremlins" (84). A carreira do primeiro disparou, a do segundo foi ficando na sombra, uma espécie de subúrbio reservado a uma série de nomes que umas vezes funcionam como duplos de Spielberg e outras desejam autonomizar-se sem marcas de excessiva rebeldia. No caso de Dante, a sombra era o melhor microcosmos para a reprodução do vírus da fábrica Corman e foi aí que, depois da maior notoriedade com "Gremlins", deixou levedar a anarquia. Ultimamente, tem filmado sobretudo para televisão ? "A Segunda Guerra Civil Americana" (1997), lançado nas salas, foi feito para o canal HBO ?, que é o espaço onde podem proliferar o fantástico, os medos e a paranóia. Mas, de novo, Spielberg lembrou-se dele. Tinha um projecto em gestação difícil, há cinco anos, vários argumentistas tinham-lhe dado forma mas não mexeram o suficiente para o realizador de "O Resgate do Soldado Ryan" dar luz verde a uma história de uma pacata cidade americana onde toda a gente é simpática menos os brinquedos ? para quem, aliás, tudo o resto é que é de brincadeira. "Pequenos Guerreiros"/"Small Soldiers" arriscava-se a ficar em suspenso, não fosse Stan Winston, o homem que trouxe à vida os dinossauros de "Parque Jurássico" e que é o mais reputado e oscarizado fabricante de criaturas de Hollywood ("Terminator 2"; "Aliens", por exemplo), ter-se antecipado a criar o musculado esquadrão Commando Elite e o seu inimigo, monstruoso de aspecto mas por isso mesmo bem-intencionado, o grupo dos Gorgonites. Spielberg "viu" as potencialidades, as lojas americanas serem inundadas de brinquedos, e do desinteresse passou à urgência: declarou aberta a rodagem ainda sem argumento acabado, mas já com os bonecos feitos. Metade deles são pequenos "robots", a outra metade tem vida digital e o estado actual da tecnologia permitiu que fossem criadas, em metade do tempo, cinco vezes mais personagens por computador do que em "O Mundo Perdido"/ "The Lost World". "Esta não é a melhor maneira de fazer filmes", exclamaria de qualquer forma Dante. E era tanta a pressa que ele não teve outra oportunidade senão copiar a matriz "Gremlins" ? minando também o seu próprio terreno ?, juntar-lhe "Toy Story" (só que esse era um filme de animação...) e alguns dos seus filmes passados. Mais do que isso: assumiu "Pequenos Guerreiros" como um "kit", uma acumulação de peças para montar, algumas dele e outras alheias. "Apocalypse now" Conheçam o subúrbio de Winslow Corners, no Ohio, que começa por ser filmado com o habitual "travelling", o traço com que a câmara da geração dos "movie brats" pintou o maravilhoso das casas de bonecas da felicidade americana ? começa aí a perversão porque no caso de Dante sabe-se ("The Burbs", 1989) que o subúrbio é, sobretudo, um inferno. É aí que pedala Alan Abernathy (Gregory Smith), o adolescente que pretende salvar a falhada loja de brinquedos do pai com um carregamento de "bonecos de acção" de que se apoderou. O que Alan não sabe é que esses brinquedos foram criados por uma fábrica que acabou de ser dominada por uma dinâmica bélica (uma corporação militar abraçou-a, como um polvo) que quer transformar espadas em arado para a família e por isso integrou nos ? aparentemente inofensivos ? bonecos um microprocessador militar. Estes não são os brinquedos que a consciência de pais politicamente correctos escolheria para os seus filhos; estes não são os brinquedos que os anúncios na TV mostram a fazer coisas que eles depois não fazem ? que saudades, escreveu na Net um fã americano do filme, dos tempos em que os "cartoons" de Bugs Bunny "eram transmitidos na televisão sem censura e Tom & Jerry se espancavam com frigideiras e martelos". Que saudades, mostra também Joe Dante e "Pequenos Guerreiros" é o ponto de exclamação. O Commando Elite vai declarar guerra a valer aos Gorgonites e, como em "Gremlins", é um adolescente que abre a caixa de Pandora. A palavra de ordem para o apocalipse, como se verá, vai ser "Gizmo", que era o nome das criaturinhas ? também aparentemente inofensivas ? de "Gremlins". E a partir daí os humanos vão ser transformados em impotentes Gullivers pelos destruidores liliputianos. Mas é de outra forma que "toys?r?us", que os "brinquedos somos nós" neste subúrbio onde a família é um batalhão enfraquecido e incapacitado: a cinefilia vai alimentar a batalha, como na história de "Matinée", de 1993, em que Dante assumia e vampirizava o embaraço da sua geração, gente (de)formada pelo cinema e em perda de lições de vida. São as guerras dos humanos que, em "Pequenos Guerreiros", a fúria destruidora dos bonecos vai copiar, uma espécie de "bricolage" a partir do património bélico das imagens: Watergate como mensagem subliminar num "zapping" televisivo; o Commando Elite no helicóptero de miniatura ao som de wagnerianas valquírias ("Apocalypse Now"); o comandante (boneco com a voz de "natural leader" de Tommy Lee Jones) com uma bandeira americana por trás como George C. Scott em "Patton", chefiando bonecos animados pelas vozes de Ernest Borgnine, Jim Brown e George Kennedy, alguns d "Os Doze Indomáveis Patifes"; ou o "não perguntem o que o vosso país pode fazer por vocês..." de Kennedy como "boutade" regurgitada.E não é que Dale Daye, o "marine" veterano que foi conselheiro militar de "Platoon" e de "O Resgate do Soldado Ryan", prestou os seus serviços em "Pequenos Guerreiros" planeando o ataque militar dos bonecos e corrigindo o jargão militar? E não é que um dos locais de rodagem foi um complexo industrial abandonado, a norte de Los Angeles, que foi usado pelo Departamento de Defesa como secreto "war room" durante a operação "Tempestade no Deserto"? "A minha guerra preferida foi a II Guerra Mundial", diz um dos "pequenos guerreiros" enquanto vê um filme na televisão. Isso diriam também Spielberg, Joe Dante ? mas com uma gargalhada de autoparódia ? e a geração dos "movie brats" que cresceu em frente ao televisor. Em nome disso, Spielberg fez "O Resgate do Soldado Ryan", mas querendo transcender essa educação por imagens através de uma catarse humanística. Para continuar a lógica de que incentiva os outros a tentarem experiências mais negras, Spielberg, produtor, tornou possível que Dante mostrasse que é o único da sua geração que não se deixou intimidar ? pelo contrário, sempre se divertiu a sublinhar isso ? pela "menoridade" de um cinema lúdico e em estado de guerra, armadilhado como um brinquedo mortífero e libertário. Mesmo se as bilheteiras não recompensaram Joe Dante....
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