Gabriel Martins construiu um microscópio para fotografar embriões a 3D

Peça a peça, fabricou um microscópio e as imagens que tirou com ele valeram-lhe um prémio da Nikon. “As imagens bonitas são só o chamariz”, diz o cientista. O que está por trás é uma questão fundamental: como é que as formas das espécies divergem durante o desenvolvimento embrionário?

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Imagem de um embrião de codorniz distinguida pela Nikon Gabriel Martins
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Gabriel Martins no laboratório do Instituto Gulbenkian de Ciência de Oeiras segura um frasco com embriões Sandra Ribeiro
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Microscópio fabricado por Gabriel Martins Sandra Ribeiro
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Imagem do interior do embrião de ratinho Gabriel Martins
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Imagem de um embrião de codorniz Gabriel Martins
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Imagem de embrião de coelho Gabriel Martins
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Imagem dos vasos sanguíneos de um embrião de coelho Gabriel Martins

No ecrã do computador, há imagens de embriões de codornizes, de coelhos, de ratinhos, peixes e até plantas. Todos surgem em imagens tridimensionais, graças a um microscópio que o próprio biólogo Gabriel Martins construiu peça a peça. Não só é possível observar a parte externa, visível a olho nu, mas também a parte interna, aquela que só o microscópio capta. Nos animais, fica registada camada após camada, os ossos, os vasos sanguíneos, os tendões, os músculos, os nervos, os outros órgãos.

“As imagens bonitas são só o chamariz”, refere Gabriel Martins, espicaçando a nossa imaginação com o que se poderá descobrir utilizando a nova técnica de microscopia. Para já, as novas fotografias são um fim em si mesmo. “Por que gosto tanto de imagem de microscopia? Olhe para aquilo!”, diz-nos o cientista, sorriso aberto, braços e mãos esticadas em direcção ao ecrã do computador onde se vê um vídeo de um embrião de codorniz com dez dias de desenvolvimento.

Foi com este vídeo que o biólogo ganhou, em Abril, o primeiro prémio Nikon Small World in Motion Competition 2013, que distingue imagens em movimento. O filme, de apenas 13 segundos, é uma sequência impressionante de mais de mil imagens de cortes, de alto a baixo, de um embrião de codorniz. A partir de uma extremidade, as camadas vão-se sobrepondo até vermos o corpo do embrião inteiro, de cima, quando o filme termina.

“Fiquei contentíssimo”, diz Gabriel Martins, referindo-se ao prémio, cujo valor monetário foi de 3000 dólares (2179 euros). “Acho as imagens fantásticas, uso-as em todas as palestras para apresentar este aparelho. E foi a prova que precisava de que aquilo que faço tem interesse e impacto. Qualquer pessoa que vê as imagens sente que é fixe fazer coisas em ciência, mesmo quando não há orçamento, mesmo quando não há dinheiro, mesmo quando as adversidades são tantas. Só precisa encontrar uma coisa gira, acreditar nela e levá-la até ao fim.

Não cabiam no microscópio
Estamos numa salinha no IGC. Gabriel Martins é coordenador desde Setembro de 2013 da Unidade de Microscopia Avançada do instituto, gerindo o equipamento de microscopia. É aqui, na sala pequena, que agora está instalado o microscópio OPenT, o primeiro microscópio português deste tipo, construído pelo investigador em 2012, quando ainda trabalhava na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL).

O aparelho não tem o aspecto de um microscópio convencional. As peças estão montadas em cima de uma base larga. Do lado esquerdo, há um motor controlado de forma robotizada. É aqui que se coloca um frasco com os embriões. Do lado direito, a alguns centímetros, está uma câmara apontada para o frasco. Uma lâmpada projecta para lá uma luz azul. Fios distribuídos em cima da base fazem lembrar uma experiência de garagem.

Como é que daqui se passa para um vídeo premiado? Com química, robótica, óptica, informática e matemática. Para obter aquelas imagens tridimensionais, o cientista começa por descolorar um embrião e substitui a água das suas células por um óleo que não refracta a luz, ao contrário da água. O frasco, onde se encontra o embrião, está acoplado a um motor que é capaz de o girar em 3000 ângulos diferentes.

E a câmara tira 1600 imagens com o embrião em diferentes posições. Como a amostra é transparente e está carregada de óleo, a câmara consegue obter imagens focadas do interior do embrião e não só à superfície. Esta captação é feita graças a um sistema robótico, que comanda quando as luzes se ligam ou desligam, além de controlar a câmara e o motor.

O microscópio está ligado a um computador e as imagens são, depois, processadas pelo mesmo algoritmo utilizado na tomografia axial computorizada (TAC), muito usada em medicina. O algoritmo processa todas as fotografias obtidas pela câmara numa nova imagem para cada camada do embrião. O resultado é um ficheiro que facilmente tem mais de um gigabyte de tamanho.

Uma ideia para todos
Esta técnica de microscopia foi inventada em 2002 no Medical Research Council, em Edimburgo, na Escócia. Durante uns anos, os microscópios com esta técnica custavam “80 ou 90 mil euros”, segundo Gabriel Martins. Mas depois deixaram de ser vendidos. Por isso, o cientista português resolveu construir ele próprio um microscópio, materializando assim uma ideia que fez parte de projectos seus rejeitados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

“Montei-o por carolice”, admite Gabriel Martins, explicando que fez as imagens vencedoras depois do seu contrato de cinco anos na FCUL (contratos Ciência da FCT) ter terminado em final de 2012 e ele já estar sem trabalho. “Mas era o tipo de imagiologia que gostava de fazer porque sou embriologista: estudo como se formam os órgãos. Estamos sempre um bocado restringidos a ver células individuais e embriões pequeninos. Não temos acesso aos estádios mais tardios [quando os animais estão quase a nascer] porque não cabem no microscópio.”

Mas o novo aparelho, que custou apenas cerca de 3000 euros em materiais, consegue obter imagens de embriões maiores, com mais de quatro centímetros de altura. Gabriel Martins teve algumas indicações da equipa de Edimburgo para a sua construção, mas foi um esforço quase autónomo, em que até teve de aprender na Internet alguns princípios de robótica. “Como foi feito à mão, é tudo muito caseiro. O que acabou por ser uma das grandes vantagens”, explica o biólogo, que diz que conceptualmente este aparelho é muito simples. “Nenhum destes bichos que aqui estão dava para observar no aparelho original [de Edimburgo], que não foi construído a pensar em coisas deste tamanho.”

Até agora, apenas com um sistema de microscopia por ressonância magnética (que produz imagens tridimensionais por ressonância magnética aplicada a amostras pequenas, incluindo embriões) ou microscopia utilizando a técnica da TAC seria possível obter imagens semelhantes. Mas estes equipamentos chegam a custar entre centenas de milhares de euros até alguns milhões de euros, diz Gabriel Martins.

Depois de construir o microscópio, o investigador e mais dois cientistas do IGC, o espanhol Emilio Gualda e o português Nuno Moreno, decidiram fazer um site (sites.google.com/site/openspinmicroscopy/) no qual explicam como se constrói este e outro microscópio. É um sistema de partilha aberta (open source), onde estão indicados os passos de construção dos aparelhos, assim como a melhor forma de processar as imagens obtidas.

“Se nós não fizermos open source, há empresas que podem especializar-se em vender versões robotizadas e isso é caríssimo. O microscópio foi criado para ser barato, fácil e simples. É para poder ser feito por qualquer pessoa sem grandes conhecimentos”, sublinha o investigador. “As empresas não querem pôr estes novos tipos de microscopia cá fora, estão a ter dificuldade em construir um aparelho com o qual se consiga trabalhar. Por que não dar a outras pessoas oportunidades de o fazer? Isto torna o nosso trabalho mais abrangente e mais útil a outros cientistas.” Neste momento, seis cientistas têm estado a pedir indicações à equipa de Gabriel Martins para construírem o mesmo modelo.

Atlas das codornizes
Com o novo microscópio, Gabriel Martins tirou fotografias de codorniz em estádios mais avançados para um atlas do desenvolvimento embrionário desta ave, que estava a ser elaborado pela equipa de Robert Bryson-Richardson, da Universidade de Monash, Austrália. O atlas estava incompleto, só tinha fotografias até ao nono dia do desenvolvimento (a ave só sai do ovo entre o 16º e 17º dia), que foi o máximo que a equipa australiana conseguiu com os microscópios comerciais.

“O artigo [do atlas] saiu na semana em que ganhámos o prémio”, conta o cientista, referindo-se aos primeiros resultados do uso do microscópio. Além do vídeo, foram distinguidas pela Nikon outras duas fotografias (uma de codorniz e outra de coelho) tiradas com este microscópio por Gabriel Martins. No comunicado do prémio, a Nikon defende que “com esta técnica, é possível estudar toda a anatomia de grandes exemplares”.

O que falta agora, segundo o investigador, é obter a informação quantitativa destas imagens. Imagine-se um embrião de codorniz de dez dias, e pense-se numa forma de retirar destas imagens tridimensionais todo o sistema circulatório: coração, veias, artérias, indo até aos vasos sanguíneos mais pequenos. Depois, criam-se métodos matemáticos para obter as medidas deste sistema: os comprimentos, as áreas e os volumes. 

A partir daqui será possível estudar o verdadeiro impacto das mutações genéticas. “Nos artigos científicos, alguém tira uma fotografia ao microscópio de uma malformação congénita do coração de um embrião mutante e tira outra fotografia de um coração de um embrião normal”, diz o investigador, explicando o paradigma actual da descoberta do efeito de uma mutação genética no desenvolvimento de um animal. Com as imagens tridimensionais criadas neste microscópio, pode ir-se mais longe. “Se o coração tem um defeito, será que os vasos sanguíneos também têm um defeito? Então, vamos ver os vasos sanguíneos em três dimensões”, exemplifica o cientista. Este tipo de avanço poderá vir a ser importante na medicina.

No entanto, será ainda necessário muito trabalho para chegar a este grau de sofisticação na utilização da técnica. Mas só assim, introduzindo a medição rigorosa no estudo da morfologia durante o desenvolvimento embrionário, é que Gabriel Martins poderá tentar responder a uma pergunta fundamental. “Estão a começar a aparecer provas quantitativas que, de facto, existe um período no desenvolvimento dos animais em que os embriões são parecidos. E não é no início nem no fim, é algures no meio”, conta o biólogo, que quer compreender este fenómeno nas aves através do estudo comparativo entre o desenvolvimento embrionário da codorniz, uma ave pequena, e o da avestruz, de tamanho formidável.

“Desta forma, é possível quantificar e saber exactamente se existe essa fase e quando é ela”, diz o cientista, referindo-se ao uso da nova técnica. Até agora, as observações originaram apenas especulações. “Muitas pessoas pensam que há um constrangimento evolutivo que faz com que, numa determinada altura, os embriões organizem os órgãos todos e, para isso, teriam de seguir o mesmo molde. Só a partir daí é que divergem.”

Agora, os cientistas poderão voltar a olhar para a forma, a morfologia dos seres vivos, como faziam até meados do século XX. Depois da genética, da bioquímica ou da biologia molecular terem aberto novos mundos à investigação da vida e terem tornado o estudo da morfologia “fora de moda”, como diz Gabriel Martins, esta nova técnica pode vir a reavivar uma disciplina antiga: “O conhecimento aprofundado da anatomia vai passar a ser novamente alvo de interesse dos cientistas, que agora têm ferramentas novas para fazer de forma quantitativa o que antigamente eram observações maioritariamente qualitativas.”

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