O desastre de Maduro após um ano à frente do chavismo

A crise económica e política da Venezuela não tem fim à vista. Meio país cansou-se de sentir excluído da política, um ano após a morte de Hugo Chávez. Está-se num momento de viragem.

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Jovens manifestantes anti-governo na praça de Altamira, em Caracas Jorge Silva/REUTERS

Não era este o cenário que Nicolás Maduro esperava quando está prestes a assinalar, a 5 de Março, o primeito aniversário da morte de Hugo Chávez, o carismático líder popular que governou a Venezuela durante 15 anos. Após duas semanas de tensão e violência, que fizeram mais de 15 mortos e centenas de feridos, nem os manifestantes que protestam contra a crise e a insegurança na Venezuela, nem o Governo que os acusa de tentativa de golpe de Estado, parecem dispostos a desistir do braço-de-ferro e desfazer o impasse que tem deixado o projecto político de socialismo bolivariano no limbo.

Há bairros convertidos em campos de batalha, com ruas barricadas pelos moradores; estudantes universitários presos por dissidência; grupos de motociclistas reconvertidos em “colectivos” paramilitares de protecção da paz e da revolução. Em dez meses de mandato, o Presidente Nicolás Maduro – o sucessor designado pelo próprio Chávez, mas eleito por uma margem mínima de 1,5 %, no auge da comoção com a morte de El Comandante – viu a crise económica do país agravar-se e evoluir para uma crise política. Vários comentadores dizem que esta evolução era inevitável, tendo em conta a conjuntura do país.

O ano de 2013 fechou com uma taxa de inflação oficial de 56,2% e uma taxa de escassez de 28%, ou seja, um em cada quatro artigos do cabaz básico não está disponível para os consumidores. Os apagões eléctricos repetem-se, deixando às escuras cidades inteiras (incluindo a capital, Caracas). O medo e a insegurança já levaram o comércio a mudar os horários, e obrigaram o Governo a lançar programas de militarização do policiamento. A Venezuela tornou-se num dos países mais violentos do mundo, com uma taxa de homicídios de 79 por cada 100 mil habitantes.

Sem nada a perder
É este contexto, dizem os analistas, que explica o actual estado de insatisfação e enquadra a adesão aos protestos. À semelhança do que sucedeu no verão passado no Brasil, a mobilização nasceu de uma questão local: os estudantes do estado de Táchira revoltaram-se contra a criminalidade dentro dos recintos universitários e saíram à rua para exigir uma resposta do Governo. Foi a reacção das autoridades ao que alimentou a segunda vaga – mais forte – de contestação (como no país vizinho): a violência policial trouxe mais gente para a rua, em vários estados do país. “As pessoas sentem que já não têm nada a perder”, refere ao PÚBLICO Juan Carlos Hidalgo, analista do Centro para la Libertad y Prosperidad Global do Cato Institute.

Em vez de estancar a crise, a repressão militar dos protestos estudantis – e posteriormente a prisão de Leopoldo López, o líder do partido de oposição Vontade Popular, acusado de instigar a violência popular – acrescentou um novo factor de descontentamento e motivou uma parte da população, que antes se mantinha à margem, a participar nos protestos.

“As pessoas normais começaram a sentir-se afectadas pelo que estava a acontecer. "Olhe para isto: sou o distribuidor dos óculos Adidas no país e estou aqui na rua com uma pedra na mão”, exemplificava ao New York Times Carlos Alviarez, de 39 anos, residente de um bairro de classe média da cidade de San Cristóbal. Como os seus vizinhos, Alviarez barricava as ruas com pneus em chamas e lançava pedras contra a Guarda Nacional, que respondia com tiros de caçadeira e gás lacrimogéneo.

“Hoje, a Venezuela está num ponto de viragem de repercussões imprevisíveis”, escrevem os especialistas do Centro de Divulgação do Conhecimento Económico para a Liberdade (Cedice Libertad), um think-tank venezuelano de orientação liberal. “A forma como o Governo geriu a economia e também as questões sociais resultaria, mais cedo ou mais tarde, num problema de governabilidade”, assinalou ao PÚBLICO o director daquela organização, Victor Maldonado Contreras.

Num artigo para o jornal El Nacional, a professora de Ciências Sociais e Filosofia Política da Universidade Simón Bolívar, Colette Capriles, diz que os “fantasmas” do regime se libertaram, pela sua incapacidade em manter viva a promessa revolucionária de um futuro melhor para os venezuelanos. “Quem sabe se o que está a acontecer não é só uma rebelião contra a exclusão política de metade do país e um sistema económico exausto (…) mas também um cansaço do chavismo”. “Temos várias fontes de insatisfação estrutural que se vêm acumulando. Sem um tipo de válvula de escape institucional, nem uma via de interlocução com o Governo, é absolutamente natural que as pessoas saiam à rua”, considera Maldonado Contreras.

Sem alternativa
Mas independentemente das razões que alimentam os protestos – uma convulsão económica passageira ou um sintoma de uma insatisfação política mais profunda  –, os analistas concordam que a turbulência não põe em causa a sobrevivência do Governo de Nicolás Maduro.

O Executivo e os deputados do Partido Socialista Unido de Venezuela mantêm a sua frente unida; o Presidente controla o aparelho e as instituições de Estado, bem como o Exército e os meios de comunicação e ainda goza do apoio e solidariedade dos aliados regionais. Em contrapartida, a oposição está fragmentada e o fenómeno das ruas é espontâneo e desorganizado – responde mais aos apelos das redes sociais do que a um líder rival de Maduro.

Porém, nota Maldonado Contreras, “ouvindo o discurso do Governo poderíamos chegar à conclusão que se sente contra a parede. Quem opta pela força bruta é porque se sente ameaçado”, observa, acrescentando que uma saída pacífica para a crise não parece provável tendo em conta a “actuação autoritária do regime”. “Há soluções políticas de diálogo, mas elas pressupõem o reconhecimento do problema e dos interlocutores e um compromisso com a mudança. Não estou optimista”, confessou.

As perspectivas económicas também se mantêm relativamente sombrias. A incerteza continua a ser a nota dominante nas análises dos mercados, apesar das medidas extraordinárias encetadas pelo Governo para corrigir as distorções da economia. A tendência de queda das exportações de crude para os Estados Unidos (à qual não é a alheia o investimento norte-americano na produção própria com recurso ao gás de xisto) poderá obrigar a rever o modelo assente na exploração petrolífera, cujas receitas representam 40% do PIB.

Nicolás Maduro obteve poderes especiais para decretar leis no sentido de aumentar o controlo estatal da economia. Mas três desvalorizações consecutivas não se reflectiram numa baixa do défice orçamental e medidas como a fixação de preços e regulação das margens de lucro dos comerciantes, ou a reforma do sistema cambial não produziram ainda os efeitos desejados nem impediram as famílias e as empresas de recorrer ao mercado negro, que funciona de forma descontrolada.

Garcilaso Pumar, dono da livraria Lugar Común de Caracas, junto à Plaza de Altamira que tem sido o palco dos protestos na capital, dizia à BBC Mundo que há duas semanas que operava a meio-gás. A sua preocupação não era com a viabilidade do negócio, mas sim com o arrastar da situação. “As pessoas continuam a pedir a improvável renúncia do Presidente em vez de concentrar-se nos problemas urgentes que o país tem de resolver”, explicava.

Essa foi também a principal mensagem que resultou da Conferência de Paz promovida na semana passada pelo Presidente Nicolás Maduro. “95% do debate está a ser ocupado com a política e só 5% com a economia, quando esta requer uma reflexão profunda”, lamentou Lorenzo Mendoza, o presidente das empresas Polar, a maior produtora alimentar do país. “É por isso que temos que parar com os bloqueios e a violência, e restabelecer o respeito pela Constituição, para podermos concentrar-nos mais na economia”, resumiu o Presidente.

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