A vida de um escritor fantasma com Julian Assange

O escocês Andrew O'Hagan falou pela primeira da sua vida com o fundador da Wikileaks, no âmbito de uma autobiografia que acabou por não ser escrita.

Foto
A WikiLeaks foi fundada por Julian Assenge Foto: Andrew Winning/Reuters

Quando o regime de Hosni Mubarak, o antigo presidente egípcio, tentou cortar o acesso à rede de telefones móveis no seu país, durante a revolução em que acabou por ser deposto, um grupo numa casa em Norfolk, Inglaterra, pirateava a empresa canadiana que assegurava o serviço e impedia Mubarak de cumprir os seus desejos. Depois, “enquanto a revolução continuava”, o líder dos autores da façanha refastelou-se no sofá a comer chocolate.

Era uma das histórias que poderíamos ter visto publicadas na autobiografia de Julian Assange, o fundador da Wikileaks, pela qual a editora Canongate pagaria cerca de 1,8 milhões de euros e cujos planos incluíam a publicação do livro em 40 países. Divergências entre Assange e a editora levaram porém a que a autobiografia nunca chegasse às livrarias. Andrew O’Hagan, que em Portugal tem editado Os Nossos Avós (ed D. Quixote) e A Vida e as Opiniões do Cão Maf e da sua Amiga Marilyn Monroe (Bertrand editora), foi escolhido como o escritor fantasma de Assange e que viria a publicar em 2011 Julian Assange: The Unauthorised Autobiography, falou pela primeira vez sobre a sua experiência com aquele que descreve como um homem “apaixonado, divertido, preguiçoso, corajoso, vaidoso, paranóico, moralista e manipulador”.

Fê-lo num texto de 47 páginas, publicado sexta-feira na London Review of Books, em que descreve um quotidiano frustrante com Assange e a sua equipa, com aquele a agir de forma esquiva perante questões incómodas e a assumir uma postura narcísica próxima da de uma estrela pop. Pelo meio contava histórias que lhe preenchiam o ego, como uma suposta mensagem de Fidel Castro em que este dizia que o Wikileaks era o único site de que gostava. “O homem que se incumbiu da tarefa de revelar os segredos do mundo simplesmente não conseguia tolerar os seus. Ele não queria fazer o livro. Não o queria desde o início”, escreve O’Hagan, escritor escocês cuja obra navega entre o romance (já foi nomeado para o Booker) e a não-ficção.

Assange sobressai no texto como alguém contraditório, que abusava de expressões retiradas de romances de espionagem da Guerra Fria e com dificuldade em articular convincentemente uma ideologia para as suas acções. Sobre as dissertações de Assange no tema “liberdade”, escreve Andrew O’Hagan: “Sabia que não havia nada que pudesse usar: era tudo Voltaire de nível básico com um punhado de Chomsky.” Fascinado com a sua própria imagem e crente no impacto que causava nos outros, o activista australiano acreditava sinceramente na sua capacidade de fazer os outros apaixonarem-se por si: isto desde Nick Davies, jornalista do Guardian (“não sexualmente”, terá dito Assange, “era como se eu fosse o jovem que ele queria ser”), à activista e política islandesa Birgitta Jónsdóttir.

Sobressai ao longo do texto, surpreendentemente, um amadorismo inesperado na acção da organização. “Era muito excitante pensar, naquela casa muito Jane Austen [a mansão no ambiente rural inglês, cedida por um apoiante milionário em que viviam Assange, a aguardar julgamento, e o seu grupo], que nenhum romance tinha alguma vez captado este novo tipo de história, em que mentiras de militares a uma escala global eram reveladas por um grupo de amadores ensonados a dois passos de um fogão.”

Andrew O’Hagan, que iniciou a sua colaboração no projecto em Janeiro de 2011, descreve um cenário em que a paranóia de Assange vai aumentando (mandava a namorada procurar possíveis assassinos entre os arbustos fronteiros à esquadra em que se tinha que apresentar diariamente) e alguém que era mais rápido a incluir na sua lista de inimigos antigos colaboradores ou pessoas próximas politicamente que aqueles que o acusavam de crime. O Guardian e o New York Times, a quem recorrera para tratar jornalisticamente o material de Estado confidencial a que a Wikileaks tivera acesso, eram os principais alvos do seu ódio. Assange queria ser visto como um colaborador com voz activa na forma como os temas eram tratados e não como mera fonte, e considerou o estatuto como uma traição.

O entusiasmo inicial na autobiografia, para a qual Assange tinha uma sugestão de título (Ban This Book: From Swedish Whores to Pentagon Bores), foi desvanecendo à medida que o prazo para a sua conclusão se aproximava. Nessa fase, o australiano começou a dizer-se “completamente chocado” com a perspectiva de ver contada a sua história. Resultou daí a publicação da autobiografia não autorizada, um rotundo falhanço comercial – o Guardian informa que vendeu menos de 700 cópias na primeira semana.

No final do trajecto de O’Hagan com Julian Assange, algo de novo surgira. O seu nome, Edward Snowden. O fundador da Wikileaks sentia uma “admiração irritada” pelo homem que espoletou a discussão mundial acerca da espionagem de Estado americana. "Quão bom é ele?", perguntou O'Hagan. "Está em nono", respondeu Assange. "No mundo? Entre os hackers informáticos? E em que posição está tu?", inquiriu o escritor. "Sou o número três".

“Uma leitura justa da situação permitiria concluir, sem parcialidade, que Assange, como uma estrela de cinema em envelhecimento, estava um pouco desalentado com o super estrelato global de Snowden", escreve O'Hagan. "Ele sempre se preocupara demasiado com a fama e com o reconhecimento, enquanto as verdadeiras relações e as acções se reduziam muitas vezes a nada", conclui.

Sugerir correcção
Comentar