Filha adoptiva de Woody Allen detalha pela primeira vez o alegado abuso sexual cometido pelo pai

Mais de 20 anos depois de ter levado as acusações às autoridades, Dylan Farrow escreveu carta aberta no New York Times porque o seu "tormento foi piorado por Hollywood" respeitar e homenager o seu pai - Allen recebeu Globo de Ouro honorário, é candidato a três Óscares.

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Segundo a carta aberta, os abusos terão ocorrido na casa de Mia e dos seus filhos biológicos e adoptivos REUTERS/Marcos Borga
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Ronan Farrow, irmão de Dylan (e aqui numa foto em Lisboa, em 2006), nos últimos meses tem atacado publicamente Woody Allen Pedro Cunha

Três semanas depois de Woody Allen ter recebido o prémio Cecil B. DeMille, o Globo de Ouro de carreira, a sua filha adoptiva Dylan Farrow escreveu pela primeira vez sobre o seu alegado abuso sexual por parte do pai numa carta aberta num blogue do New York Times. Relata o que terá acontecido num dia do Verão de 1992 na casa da mãe, Mia Farrow, durante a publicitada separação dos pais. “Woody Allen nunca foi condenado por qualquer crime”, escreve mais de 20 anos depois de o caso ter sido tornado público, mas “o facto de que ele se safou com o que me fez assombrou-me enquanto crescia. Vivi com culpa por lhe ter permitido estar perto de outras meninas”.

A querela entre Mia Farrow e Allen foi uma das separações mais infames da década de 1990 – Allen apaixonara-se pela filha adoptiva da actriz com o compositor André Previn, Soon-Yi Previn, então com 19 anos, e o divórcio encheu as páginas dos jornais. As acusações de abuso sexual sobre a filha Dylan, então com sete anos, tornaram-se uma parte da história ("Não sabia que o meu pai usaria a sua relação sexual com a minha irmã para encobrir do abuso que me infligiu", lê-se a certa altura na carta aberta de Dylan Farrow).

Dylan tem hoje 28 anos, mudou de nome e vive no estado norte-americano da Florida com o marido. Detalha agora pela primeira vez sobre a sua história na esteira do Globo de Ouro honorário e das três nomeações para os Óscares que o filme Blue Jasmine, de Allen, obteve. O seu irmão, Ronan Farrow, que nos últimos meses tem atacado publicamente Allen, ironizou num tweet na madrugada após a cerimónia dos Globos em que o pai foi homenageado com um discurso de Diane Keaton, actriz e amiga de longa data do realizador: “Não vi o tributo a Woody Allen – a parte [na montagem de clips de filmes do realizador] em que uma mulher confirmou publicamente que ele a molestou aos sete anos foi posta antes ou depois de Annie Hall?”.

Mia Farrow, por seu turno, anunciava na mesma altura no Twitter que ia mudar de canal quando começou o tributo– homenagem que incluiu também um excerto de A Rosa Púrpura do Cairo, um dos apogeus do trabalho dos dois. Ainda no Twitter, Mia acusaria os Globos, ao premiarem Allen, de desprezo pela sua filha. Um terceiro tweet era uma pergunta: “Ele é um pedófilo?”.

As declarações dos Farrow geraram uma discussão online sobre a justiça do prémio e a validade do trabalho de alguém sobre quem pendem suspeitas graves no ar. Sam Adams, crítico no site de informação sobre cinema Indiewire, diagnosticou domingo que“o debate estava adormecido algures nos recessos da consciência nacional até ao tributo dos Globos de Ouro a Allen”, que “o empurrou novamente para os holofotes”.

Agora Dylan Farrow conta a sua história na primeira pessoa, precisando o que se recorda desse Agosto de 1992, Na sua carta aberta interpela Diane Keaton e outros protagonistas dos filmes Woody Allen. Descreve as sequelas do suposto incidente. Assume que foi a admiração do mundo artístico pelo trabalho do pai que pesou nos seus silêncios - "Durante tanto tempo, a aceitação de Woody Allen silenciou-me".

“Tinha pavor de ser tocada por homens. Desenvolvi um distúrbio alimentar. Comecei a cortar-me. Esse tormento foi piorado por Hollywood.”

Segundo a carta, que é publicada no blogue de um colunista do diário norte-americano, Nicholas Kristof - que explica ser amigo de Mia Farrow e por isso ter sido o escolhido por Dylan para publicar a mensagem -, os abusos terão ocorrido na casa de Mia e dos seus filhos. Num post prévio à publicação da carta, Kristof conta que em 2013 foi diagnosticado stress pós-traumático a Dylan e que a jovem, quando soube que Allen iria receber o Globo de carreira, se enrolou na cama a chorar descontroladamente.

O sótão

“Qual é o seu filme favorito de Woody Allen? Antes de responder, deve saber: quando eu tinha sete anos, Woody Allen levou-me pela mão e conduziu-me até um sótão sombrio, tipo armário, no segundo andar da nossa casa. Disse-me para me deitar de barriga para baixo e brincar com o comboio eléctrico do meu irmão. Então, atacou-me sexualmente. Falou comigo enquanto o fazia, segredando que eu era uma boa menina, que era um segredo nosso, prometendo que iríamos para Paris e que seria uma estrela nos seus filmes.”

A carta começa assim e descreve depois outros actos de Allen que segundo Dylan a deixaram desconfortável e que seriam “ardilosamente escondidos” de Mia Farrow pelo pai adoptivo. Algo que dissera já em Novembro à revista Vanity Fair, num artigo dedicado ao clã Farrow em que se fazia um flashback sobre o circo mediático em torno da família enquanto tudo se desmoronava – o casal separava-se, falava-se dos “contactos impróprios” de Allen com Dylan, os paparazzi rodeavam a família e Maridos e Mulheres estava pronto. A Vanity Fair detalhava que, nesse Verão de 1992, Mia gravou um vídeo da filha a falar sobre o sucedido e que a levou ao pediatra.

Precisamente sobre o papel da mãe, cujo relacionamento com Allen durou 12 anos durante os quais os dois viveram em casas separadas, Dylan escreve: “A certa altura, a minha mãe sentou-se comigo e disse-me que eu não ficaria em apuros se estivesse a mentir – que podia retirar tudo o que tinha dito. Não podia. Era tudo verdade. Mas as alegações de abuso sexual contra os poderosos protelam-se mais facilmente. Havia peritos disponíveis a atacar a minha credibilidade. Havia médicos disponíveis para fazer uma criança abusada duvidar de si.”

“A minha mãe não quis dar sequência às acusações criminais, apesar de [existirem] indícios de causa provável pelo Estado do Connecticut – por causa, nas palavras do procurador, da fragilidade da ‘criança vítima’”, lê-se na carta. A expressão “causa provável” fora proferida pelo promotor público Frank Maco, que seria depois admoestado por um painel disciplinar. Na altura, decorria a luta pela custódia das crianças, iniciada por Allen uma semana depois de Farrow e de o pediatra de Dylan terem apresentado queixa contra o realizador. Duas décadas depois, Frank Maco diria à Vanity Fair que como Dylan não cooperava, não prestando declarações sobre o sucedido, não seria justo levar o caso a tribunal. No mesmo artigo, Dylan, que é hoje escritora e ilustradora, diz: “Se pudesse falar com a Dylan de sete anos, dir-lhe-ia para ser corajosa, para testemunhar”.

A relação com Soon-Yi

Woody Allen negou as acusações ao longo dos anos, nomeadamente numa conferência de imprensa depois de uma equipa da Clínica de Abuso Sexual de Menores do Hospital de New Haven-Yale ter concluído que criança não fora abusada sexualmente. Esse processo de avaliação seria posto em causa pelo juiz que presidiu ao processo de custódia, que mostrou “reservas quanto à fiabilidade do relatório”. Em Junho de 1993 decidiu, por isso, entregar a Mia Farrow a custódia dos filhos do casal, negando direitos de visita de Allen a Dylan. E decidiu ainda não existirem provas da tese de Allen de que Mia “agira por desejo de vingança contra ele por ter seduzido Soon-Yi”.

Há uma semana, o realizador Robert Weide, autor de um documentário sobre Allen, publicou um longo artigo no site Daily Beast, avisando desde logo ter uma relação “amigável” com Woody. Mantém, segundo o Los Angeles Times, tudo o que escreveu nessa altura apesar da carta de Dylan. Nele, salienta que a relação de Allen com Soon-Yi condicionou a apreciação do caso de alegado abuso sexual. Sublinha ainda o que no seu entender são momentos e contradições de uma narrativa febrilmente acompanhada pela imprensa americana. Questiona, por exemplo: “No meio de negociações sobre custódia [parental] e pensões, durante as quais Woody tinha de se comportar no seu melhor, numa casa que pertencia à sua ex-namorada furiosa e cheia de pessoas enraivecidas com ele, Woody, que é um famoso claustrofóbico, decidiu que seria a altura e lugar ideais para levar a filha ao sótão e molestá-la”?

Weide, cujo texto está a circular viralmente na Internet, reconhece o direito de Dylan e Ronan de denunciar algo em que os dois acreditam. Mas lembra que as acusações geraram uma investigação da polícia estatal do Connecticut que não resultou em acusação. Recupera as declarações do médico John Leventhal, que chefiou a equipa hospitalar sobre o tema (muitas vezes acusada de ser parcial a favor de Allen) e que depôs justificando por que é que não o caso não foi considerado sólido para motivar uma acusação: “Tínhamos duas hipóteses: uma, que estas eram declarações feitas por uma criança emocionalmente perturbada e que se fixaram na sua mente. E a outra hipótese era que ela fora treinada ou influenciada pela mãe. Pensamos que foi provavelmente uma combinação” das duas.

Numa altura em que nem os representantes de Allen nem os de Mia Farrow responderam aos pedidos de reacções do New York Times ou das agências Associated Press e Reuters, a carta de Dylan interpela vários intérpretes e colaboradores de Allen. De Diane Keaton (“Conhecias-me quando eu era uma menina, Diane Keaton. Esqueceste-te de mim?”) a Cate Blanchett, que está nomeada para o Óscar de Melhor Actriz por Blue Jasmine - “E se tivesse sido um filho teu, Cate Blanchett?”. “Woody Allen é um testemunho vivo da forma como a nossa sociedade falha aos sobreviventes de abuso sexual”, diz ainda Dylan Farrow na carta aberta, cujo cabeçalho inclui uma nota do colunista Nicholas Kristof em que este salvaguarda que Allen “merece a presunção de inocência” visto nunca ter sido acusado criminalmente por este caso.

Notícia corrigida às 16h13: informação sobre data dos alegados abusos relatados por Dylan Farrow

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