Estado não considera colecção de Miró do BPN, que vai a leilão, uma “prioridade”

A venda de 85 obras do artista catalão, agendada para 4 e 5 de Fevereiro na Christie's de Londres, está a ser alvo de contestação. Secretaria de Estado diz que a sua aquisição "não é considerada uma prioridade”.

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Femmes et oiseaux (Mulheres e pássaros) (1968) Christie's Images
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Painting (1953) Christie's Images
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Le chant des oiseaux à l’automne (1937) Christie's Images

A contestação do leilão das 85 obras do catalão Joan Miró (1893-1983), que estão nas mãos do Estado desde a nacionalização do Banco Português de Negócios (BPN), vai chegar ao Parlamento na sexta-feira, quando serão votadas duas resoluções, do PS e do PCP, contra a venda agendada para Fevereiro na Christie’s, em Londres. As obras, avaliadas pela leiloeira em cerca de 35 milhões de euros, foram alvo de uma petição na Internet assinada até ontem por mais de 3500 pessoas e que questiona se a necessidade de reduzir o "buraco" do BPN não se está a sobrepor aos interesses culturais do país. O secretário de Estado da Cultura respondeu ao PÚBLICO que a aquisição desta colecção não é uma prioridade.

Tem sido atribulado e nem sempre claro o percurso desta colecção de pinturas, desenhos, colagens e guaches do surrealista Joan Miró. São 85 obras que percorrem as diferentes fases da produção artística do catalão, da sua vida e dos acontecimentos do seu tempo. É por isso que a colecção, comprada em 2006 a um coleccionador japonês por cerca de 34 milhões de euros pelo BPN de José Oliveira Costa, é vista como “uma das mais extensas e impressionantes ofertas de trabalhos do artista que alguma vez foi a leilão”, como escreveu a Christie’s quando anunciou o leilão no final de 2013, que acontece a 4 e 5 de Fevereiro em Londres. No início deste mês, foi lançada a petição contra a venda das obras e na semana passada o PS e o PCP apresentaram os seus projectos de resolução no mesmo sentido.

Quando em 2008 o Governo de José Sócrates anunciou a nacionalização do BPN, o Estado herdou a colecção, que desde então tem estado guardada nos cofres da Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa. Cinco anos passaram e nunca estas pinturas e desenhos foram expostos em Portugal – contudo, alguns dos trabalhos chegaram a viajar e a integrar retrospectivas de Joan Miró, como aconteceu em 2009 no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA). Agora, vão ser vendidos para que se possa abater mais uma parte da dívida deixada pelo BPN e a possibilidade de exposição ou integração em alguma colecção pública é cada vez mais distante.

Pedro Lapa, director do Museu Colecção Berardo, em Lisboa, chegou a ser desafiado por Oliveira e Costa quando ainda estava na direcção do Museu do Chiado para organizar uma exposição das obras, mas “as coisas no BPN complicaram-se e nunca aconteceu nada”, como conta ao PÚBLICO. “Mostrei interesse e quis saber como eram as obras, mas depois tudo começou a conturbar-se e Oliveira Costa disse-me que afinal o projecto seria outro, que estaria interessado em fazer um fundo de investimento [com as obras e pô-las] a circular. Ainda lhe pedi para expor primeiro em Portugal, mas tudo se precipitou”, lembra o curador, que contesta a venda destes 85 trabalhos. “Obviamente, desde que o Estado resolve nacionalizar o banco que isto passou a ser património público e por isso não consigo perceber como é que se pode pensar em vender uma colecção destas”, diz Pedro Lapa. E lembra: "[Ainda hoje] “nós, contribuintes, estamos a pagar o rombo do BPN.”

Para Pedro Lapa é incompreensível que o Estado esteja disposto a perder estas 85 obras de Miró, “um fantástico artista, um dos maiores do século XX”, num momento em que os museus portugueses “não têm meios nenhuns para aumentar as suas próprias colecções”. “É uma oportunidade única, estas obras já estão aqui, são do Estado e portanto como é que se se vai desfazer de obras de arte deste valor, que são património universal e que seriam uma profunda mais-valia para qualquer museu em Portugal?”, questiona o director do Museu Colecção Berardo. “Se é uma questão económica e o problema é a falta de dinheiro, porque não se vende também o [Hieronymus] Bosch do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA)?”, sugere, referindo-se ao tríptico Tentações de Santo Antão do pintor holandês, uma das jóias do MNAA.

Estes são alguns dos argumentos usados também por Carlos Cabral Nunes, que lançou online a petição Manutenção em Portugal das obras de Miró (do património BPN). O galerista, director da Perve Galeria e que inaugurou recentemente a Casa da Liberdade – Mário Cesariny, lamenta a decisão do Estado, anunciada em Julho de 2012 pela então secretária de Estado do Tesouro e actual ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque. Na altura, Maria Luís Albuquerque explicou que seriam consultadas as principais leiloeiras internacionais para que a colecção pudesse ser vendida num “leilão público, com toda a transparência”. Nesse processo de consulta, a escolhida foi a Christie’s, mas Carlos Cabral Nunes questiona os timings.

Passou mais de um ano entre o anúncio da intenção de venda e o anúncio do leilão que, “inesperadamente”, surgiu com pouco mais de um mês de antecedência em relação à data agendada pela Christie’s. “Estávamos expectantes de conhecer as obras, pelo menos esperava que fossem expostas antes de serem vendidas e de repente está tudo decidido, está tudo feito”, aponta Cabral Nunes. “É uma situação negligente, porque, como se sabe, as obras estavam à guarda da Caixa Geral de Depósitos, que tem a Culturgest, que é um espaço de exposições, e por isso não se percebe porque é estas obras nunca foram expostas quando os contribuintes foram chamados a pagar a sua manutenção, a sua guarda e os seus custos de seguro”, continua o galerista, que levou o tema aos grupos parlamentares do PS e do PCP. Os dois partidos reconhecem a importância destas obras para o património cultural português, pedindo que se cancele a venda e se estude uma forma de rentabilizar a colecção em Portugal.

“Nunca o Estado vai ter meios para gastar milhões para comprar obras de arte, isto simplesmente não acontece”, diz Pedro Lapa, que esperava que a Secretaria de Estado da Cultura já se tivesse pronunciado sobre o assunto. Numa breve resposta ao PÚBLICO, o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, fez saber ontem que “a aquisição da colecção de Joan Miró não é considerada uma prioridade no actual contexto de organização das colecções do Estado”. O PÚBLICO contactou a Fundação Joan Miró, em Barcelona, sobre um potencial interesse nestas obras, mas a entidade disse não ter informações suficientes e não quis prestar mais esclarecimentos. Já o neto de Joan Miró, à frente da Sucessió Miró, empresa que gere o legado do artista plástico, remeteu quaisquer questões para a Christie's.

"É o mercado que decide"
Tendo em conta a polémica em torno da venda, Olivier Camu, responsável pelo departamento de arte moderna e impressionista da Christie’s e por esta venda, garantiu ao PÚBLICO que ela continua marcada. “Oferecer estas obras em leilão é a forma mais transparente e justa para coleccionadores privados internacionais, para instituições e para os clientes comerciais”, diz, afastando a ideia, constante na petição, de que as obras vão ser vendidas abaixo do seu preço potencial. “Quando uma peça vai à praça, o valor que atinge reflecte o preço real do mercado, uma vez que, em última instância, é o mercado que decide”, defende Olivier Camu, revelando que desde que o leilão foi anunciado “tem surgido um interesse global de compradores e dos meios de comunicação”.

Entre as obras a leiloar, que estarão disponíveis em pré-venda no dia 20 deste mês, destacam-se duas: Femmes et oiseaux (Mulheres e pássaros), um óleo pintado em 1968 cujas estimativas de venda variam entre os 4,8 milhões e os 8,4 milhões de euros; e Painting (Pintura), um “monumental óleo sobre tela” de 1953 de 5m x 57cm, avaliado entre os 3 milhões e os 4,2 milhões de euros.

“A obra de Miró transcende as categorias tradicionais”, diz Camu, explicando que são vários os coleccionadores que procuram o trabalho do catalão. “Tanto coleccionadores de arte moderna e impressionista como coleccionadores da arte contemporânea e do pós-guerra lutam pelas suas pinturas, trabalhos em papel e esculturas”, descreve o especialista da Christie’s, esclarecendo que, se alguma das obras não encontrar um comprador, caberá ao proprietário, neste caso a Parvalorem (sociedade criada no âmbito do Ministério das Finanças para recuperar créditos do BPN), decidir se recebe de volta os trabalhos ou se os integra em novos leilões.

Ao PÚBLICO, via email, Francisco Nogueira Leite, presidente da Parvalorem, explicou que esta venda “é fundamental para a redução dos financiamentos e respectivos encargos financeiros contraídos para a aquisição dos activos no âmbito do processo de reprivatização do BPN”. Este encaixe, segundo Nogueira Leite, servirá para fazer face aos encargos da Parvalorem e da Parups, outra sociedade-veículo que absorveu os activos tóxicos do banco. O presidente da Parvalorem diz ter recebido “ao longo dos meses diversos contactos, de diversas partes do mundo, a manifestar o interesse na aquisição da totalidade da colecção, justamente porque se trata de uma colecção que contempla praticamente todas as fases da vida artística do pintor espanhol e sua evolução”. Um leilão internacional é, para Nogueira Leite, “a forma mais adequada e transparente para proceder à alienação da mesma”.

Confrontado com as críticas públicas quanto à escolha da leiloeira e ao método de venda em dois momentos em Londres, o presidente da Parvalorem esclarece que foram contactadas as leiloeiras internacionais Bonhams, Phillips, Sotheby’s e Christie’s – das “40 obras de Joan Miró de maior valor vendidas em leilão, 22” foram levadas à praça por esta última, argumenta. “No top dez de vendas, esta leiloeira realizou seis”, acrescenta Nogueira Leite, convicto de que “esta operação vai ser um sucesso”. O recorde de venda em leilão de uma obra de Miró pertence a Estrela Azul, vendido na Sotheby's em 2012 por 29,4 milhões de euros.

Carlos Cabral Nunes não partilha dessa convicção, defendendo que, a vender as obras, a melhor opção seria dividi-las por vários leilões em diferentes cidades. “Há obras que têm mais valor para um mercado e obras que valem mais noutro”, diz o galerista. “Teria exposto as obras primeiro, o que só faria com que se valorizassem ainda mais.” Cabral Nunes critica o facto de a colecção ter sido integrada “em leilões que já estavam marcados”. “O que me leva a crer que há algo de sinistro a decorrer nos bastidores”, prossegue, lembrando-se do caso Crivelli, a pintura cuja exportação o Estado autorizou e está há sete meses a tentar reverter. “Só lhe demos importância quando percebemos que já o tínhamos perdido, temo que aconteça o mesmo aqui.”

Pedro Lapa não gosta da comparação com o que aconteceu com a obra de Carlo Crivelli, na medida em que esta pertencia a um privado. “Mas estas obras de Miró pertencem ao Estado”, o que para o director do Museu Colecção Berardo torna este caso muito mais grave. E lembra: “É absolutamente criminoso perder uma oportunidade destas.”
 
 

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