A opção pela reforma agrária esteve "na realidade em que os alentejanos nasceram”

José Soeiro, um dos protagonistas da reforma agrária e ex-deputado do PCP, conta em livro a sua versão sobre a ocupação de terras no Alentejo. O então ministro da Agricultura, Oliveira Baptista, fez o prefácio e corroborou a tese.

Não foi a ideologia que alimentou a transformação agrária tentada nos campos do Sul entre 1975 e 1985. A razão imediata residiu no desejo de solucionar o desemprego crónico na região, vontade que a dinâmica revolucionária substituiu pela ambição de entregar a terra a quem a trabalhasse. E, pela primeira vez na história do Alentejo, um movimento revolucionário baseado num comunismo popular suspendeu durante uma década o domínio dos agrários.

Em 2014 completam-se 40 anos do início do processo da reforma agrária. Tempo suficiente para José Soeiro – protagonista maior da transformação fundiária nos campos do Sul – preencher “alguns vazios” sobre a “revolução inacabada”, com a publicação do livro Reforma Agrária – A Revolução no Alentejo, apresentado em Beja no final de Novembro e de que é autor.

Ao longo de 370 páginas estão descritos os acontecimentos ocorridos no distrito de Beja entre 1974 e 1977 relativos ao processo da reforma agrária. O seu conteúdo é apresentado como um “testemunho pessoal”, acautela José Soeiro, ex-sindicalista, ex-membro do comité central, da comissão política e do secretariado do comité central do PCP e ex-deputado deste partido na Assembleia da República.

A reforma agrária no Alentejo não foi “acto voluntarista, irresponsável”, uma sequência de acções “anarquizantes e desordeiras” protagonizada por “bandos de malfeitores, instigados pelos sindicatos, pelo PCP ou por militares desalinhados”, frisa o autor do livro.

“Tudo o que é descrito está devidamente comprovado e documentado”, realçou Fernando Oliveira Baptista, ministro da Agricultura e Pescas nos governos provisórios liderados por Vasco Gonçalves, que escreveu o prefácio e fez a apresentação do livro.

O antigo ministro é igualmente peremptório na análise que faz dos fundamentos que sustentaram o gesto de “soberania” dos trabalhadores e dos pequenos agricultores alentejanos. Não foi a evocação de “modelos doutrinais ou um credo político” que mobilizou os trabalhadores rurais para a ocupação de 1.140.000 hectares de terra e a constituição de unidades colectivas de produção (UCP), mas um modelo de “comunismo popular que assentava na actividade de muitos elementos do PCP sem se confundir com ela”, sustenta Oliveira Baptista.

Soeiro, que se define como operário agrícola, após quatro décadas de intensa actividade militante que o guindou às mais altas funções no PCP, completa: “A paixão pela ideologia não foi a força que determinou a reforma agrária.” A causa dos acontecimentos esteve “na realidade em que os alentejanos nasceram e cresceram”.

A mais “audaciosa” transformação social ocorrida nos campos do Alentejo foi acalentada por gerações de alentejanos “socialmente isolados”, que suportavam condições de vida “desumanas e desapossados dos mais elementares direitos”. Foram os “criadores de riqueza de que outros usufruíam” com retribuições salariais muito baixas, incertos no valor e precários no tempo a trabalhar na terra que “tantas e tantas vezes regavam com o próprio sangue”, dramatiza o autor de Reforma Agrária – A Revolução no Alentejo.

No livro é dado relevo ao papel do Partido Comunista na luta pelo direito ao trabalho. Importava, em primeiro lugar, a formação de sindicatos e a sindicalização dos trabalhadores rurais de todo o Alentejo e sul de Santarém. A reforma agrária não era a “tarefa imediata” para o PCP, esclarece José Soeiro, sublinhando que a direcção do partido “sempre defendeu” que a mudança necessária tinha de ter em conta a “ vontade” dos trabalhadores e dos pequenos agricultores.

Mas “foi o partido que apelou à liquidação do latifúndio” e apontou a necessidade da realização de uma reforma agrária. Assim consta no relatório de Álvaro Cunhal Rumo à Vitória elaborado em 1964, e no Programa da Revolução Democrática e Nacional então aprovado com a palavra de ordem: “ A terra a quem a trabalha.” A “justeza” desta opção ficou patente no número de trabalhadores sindicalizados que em poucos meses ultrapassou os 25 mil, num cenário de desemprego que atingia, logo após o 25 de Abril, 72 freguesias das 90 do distrito.

Apesar dos acordos firmados entre a Associação Livre de Agricultores (ALA) e o sindicato, grande parte dos donos das terras “faltava ao cumprimento” das convenções celebradas. Mantinham searas por ceifar. O gado era vendido indiscriminadamente, nomeadamente fêmeas. Deixavam as terras incultas. Destruíam culturas, lavrando-as ou dando-as como alimento ao gado. Por todo o distrito se viam grandes extensões de terra arável incultas e votadas exclusivamente à caça, no dealbar da reforma agrária. Num levantamento pelo Ministério da Agricultura em 1975, havia no Alentejo cerca de 800.000 hectares de coutadas.

Soeiro recorda que não faltavam exemplos de incumprimento das convenções, de resistência às decisões da comissão distrital (organismo que possuía representantes da ALA e do sindicato e que tinha, entre outras funções, a tarefa de distribuir os desempregados pelas explorações agrícolas que se encontravam subaproveitadas ou abandonadas). Mas “também é verdade que nem tudo estava inculto e abandonado”, vinca o antigo sindicalista.

Perante o ambiente de crescente tensão social, o líder do PCP, Álvaro Cunhal, sentenciou a 15 de Dezembro de 1974, num comício em Alpiarça: “O tempo dos monopólios e dos senhores da terra acabou.” A 2 de Fevereiro de 1975 num comício que juntou em Beja quase 50 mil manifestantes, foi aprovada uma declaração que veio a ditar o fim do latifúndio. No final de 1975 tinha sido ocupada quase 25% da superfície arável de Portugal (praticamente 1,2 milhões de hectares).

Trabalhavam nas herdades ocupadas cerca de 44.000 trabalhadores a tempo inteiro e 28.000 (na maioria mulheres) em regime de tempo parcial. Em conjunto representavam cerca de 43% dos assalariados do sector primário na região (INE, 1979).

Ao contrário do que por vezes tem sido afirmado, Soeiro declara que a ideia de defender herdades estatais como modelo “nunca foi sugerida aos membros do partido que eram dirigentes do sindicato”. Como em nenhum momento chegou, vinda do partido, qualquer orientação contrária à constituição das unidades colectivas de produção”, garante.

A partir de 1976, a reforma agrária começa a enfrentar as primeiras adversidades. Para além das críticas incisivas “à colectivização das terras no Alentejo” formuladas pelo então primeiro-ministro Mário Soares, num plenário de trabalhadores agrícolas envolvidos na gestão das explorações colectivas realizado após o 25 de Novembro de 1975, são patentes nas intervenções e documentos aprovados as contradições e os primeiros sinais de divisão. O sindicato passou a ser encarado “como um inimigo”. E até havia quem questionasse, como recorda José Soeiro: “Já temos as terras, para que queremos nós o sindicato?”

O organismo representativo dos trabalhadores agrícolas alertava então para o risco de alguns dos dirigentes das cooperativas e do sindicato se transformarem nos “novos senhores” da terra, com um argumento perturbador: “Será que tirámos as herdades aos latifundiários para pôr lá outros? Será que as herdades vão servir apenas o interesse de alguns?”

Foi neste ambiente marcado pelo crescendo de dúvidas e incertezas que a reforma agrária passou a integrar da Constituição da República em 2 de Abril de 1976. A publicação da chamada "Lei Barreto" (Lei 77/77 – Lei de Bases da Reforma Agrária) veio anunciar o fim da experiência fundiária. A nova legislação forçou os trabalhadores a entregar herdades acima dos 500 hectares de sequeiro e 50 hectares de regadio. A derrota do processo de transformação da propriedade no Alentejo já se vislumbrava.

Ao PS, em particular ao seu secretário-geral de então, Mário Soares, são imputadas “particulares responsabilidades em todo o processo contra-revolucionário”, ao insistir que o Alentejo estava a ser “saqueado, ocupado, colectivizado e estatizado pelos comunistas”, recorda Soeiro, salientando que as opções do então líder socialista “abriram as portas do poder à direita, conduzindo à destruição da reforma agrária”.

 

A reforma que Cavaco inverteu

Documentos oficiais da época referem que, durante o V Governo provisório (em funções nos meses de Agosto e Setembro de 1975), era primeiro-ministro Vasco Gonçalves, e Fernando Oliveira Baptista ministro da Agricultura, foram expropriados 208.000 hectares. Durante o VI Governo Provisório do primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, e com Lopes Cardoso ministro da Agricultura, foram expropriados 680.000 hectares. A Zona de Intervenção da Reforma Agrária (ZIRA) abrangia uma área com 3.200.000 hectares, mas a área a expropriar não ultrapassava os 1.640.000 hectares. Deste total, o máximo de terra que chegou a estar na posse dos trabalhadores foi de 1.140.000 hectares (35,6% da área total da ZIRA).

Foi num ambiente de grande tensão que o fim da reforma agrária foi iniciado em Beja, precisamente onde tinha começado. E o que António Barreto começou Cavaco Silva concluiu. O então primeiro-ministro deixaria expresso que só retomaria a construção da barragem do Alqueva depois de resolvido o problema da propriedade fundiária no Alentejo.

Com a chegada de Cavaco Silva à liderança do Governo terminou a mais “séria tentativa” que já houve em Portugal para que “tivemos um modelo agrícola no Alentejo”, assinala Oliveira Baptista, frisando que a reforma agrária foi destruída na sequência do 25 de Novembro. “Se a reforma agrária tem vingado, e viesse a beneficiar dos apoios que hoje são prestados à agricultura, nós teríamos outro Alentejo”, assinala o antigo ministro da Agricultura. Deixa no ar uma interrogação: “Que seria das unidades colectivas de produção a trabalhar com os apoios financeiros que hoje são dados à agricultura?

O fim da revolução agrária no Alentejo, traduzido em números apresentados por José Soeiro, revela que “mais de 50 mil postos de trabalho foram destruídos. Dezenas de milhares de alentejanos, sobretudo jovens, foram obrigados a emigrar. A Segurança Social, que recebia das unidades colectivas uma média de 82 milhões de euros, foi obrigada a gastar centenas de milhões de euros em subsídios de desemprego, rendimentos mínimos e cursos de formação profissional. O Estado pagou centenas de milhões de euros em indemnizações aos grandes agrários e os trabalhadores ficaram sem máquinas, gados, frutos pendentes e investimentos efectuados nas herdades no valor de centenas de milhões de euros”.
 
 
 
 
 
 

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