Não deixem calar a voz dos professores!

Professor de História escreve carta ao primeiro-ministro.

Escrevo esta carta ao senhor primeiro ministro como um cidadão ativo e consciente. Não estou comprometido com qualquer ideologia política, partido político ou movimento cívico vinculado a interesses associados à esquerda ou direita política.

Portanto, o cidadão que lhe escreve esta carta apenas quer mostrar a sua reflexão sobre a situação que o ensino em Portugal está a atravessar de uma forma lógica, coerente e isenta.

Não escrevo esta carta para ter pena de mim ou de qualquer dos professores que possam estar identificados com as palavras que lhe escrevo, porque, reafirmo: escrevo a título individual e sem qualquer comprometimento ideológico ou político. Também não escrevo esta carta para Vossa Excelência estender-me a sua mão como uma ação de bondade franciscana.

O meu intuito é esclarecer-lhe algumas situações que se passam no ensino em Portugal. São situações que eu experienciei e que no âmbito da sua esfera ministerial poderão ser-lhe desconhecidas. São situações que certamente muitos professores e educadores terão atravessado, em que dão um pouco de si e das suas vidas em prol da formação dos portugueses de amanhã. E que exemplos melhores que os nossos jovens têm senão os professores que fazem parte da memória de cada um de nós.

Escrevo esta carta para chamar a atenção a Vossa Excelência sobre o cataclisma que se está a abater na educação nacional. Uma educação cada vez mais despersonalizada, com menos afetos, mais insensível e que cede a favor de interesses económicos e corporativos exteriores ao sistema de ensino. Escrevo este texto com indignação, mas a minha formação concedeu-me o privilégio de conseguir escrever estas palavras em forma de arma, uma arma que não quer ferir nem matar ninguém, mas que pretende chamar a atenção para o flagelo da educação, sem medo e com frontalidade!

Eu, João Tomé, sou professor de História, licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra desde o dia 27 de junho de 2008. A minha vida profissional tem-se baseado numa constante alternância entre vários estabelecimentos de ensino privado com contratos precários sob a forma de prestação de serviços. Perante o ensino público nacional estou enquadrado no regime de professores contratados, tendo sido apenas colocado por um mês a fazer um horário de substituição de outro docente. Nunca me queixei.

Tenho 28 anos e pertenço à geração mais qualificada que este país já teve até hoje. No entanto, os seus correligionários convidam a juventude a emigrar para adquirir mais experiência, para depois voltar a Portugal com um conjunto de conhecimentos que poderão ser úteis na sua comunidade. Será que quem vai embora, quererá voltar? Duvido que isso possa acontecer com a esmagadora maioria dos nossos jovens.

Eu nunca quis sair. Por teimosia minha ou por apenas não ter nos meus genes a ânsia da diáspora e, acima de tudo, por temer esse sentimento que é a saudade, ao deixar em casa as pessoas que mais amo. A minha atitude sempre foi a da persistência e de lutar pelo desenvolvimento do país! Talvez seja o momento certo de Vossa Excelência começar a olhar para esta geração com outros olhos; lembrar-se dos seus tempos de juventude onde iniciou a sua militância
política e que perspetivas defendia para os jovens da sua própria geração.

Mais em concreto, o que está a acontecer neste momento no sistema de educação em Portugal é grave. Com toda a certeza, ao seu gabinete chegam dados sobre o número de alunos a frequentar a rede pública de ensino, a relação entre sucesso e insucesso escolar e, finalmente, o número de docentes que pertence à referida rede.

Foquemo-nos nos professores. Sim, os professores, os pilares essenciais de todo o sistema educativo português que deveriam apenas de ter como função a educação e formação de todos os jovens. No entanto, não é o que acontece. Cada vez mais burocracia, cada vez mais pressão por resultados, no fundo, há cada vez menos condições. As salas de aulas estão melhor equipadas: quadros-interativos onde se podem mover imagens e letras, manuais digitais ricos em imagens ilustrativas, salas de aulas com um computador para cada aluno, tudo com o simples objetivo de cativar a atenção do aluno, para este conseguir melhores desempenhos escolares.

Contudo, Vossa Excelência esquece-se de uma coisa muito importante: a palavra. O maior instrumento da educação é a palavra, e essa é proferida pelos professores que usam a sua voz para transmitir os conteúdos das diferentes disciplinas aos seus alunos. A palavra do professor é um recurso em que este deve investir a maior parte do seu tempo. Para tal, todos os dias, o professor concilia a sua vida profissional com a sua vida familiar, muitas vezes, sacrificando esta última
para tornar a aula do dia seguinte mais entusiasmante para os seus alunos. Como poderemos entusiasmar os nossos alunos, se o Ministério da Educação e da Ciência e por conseguinte, o seu Governo, condicionam o trabalho dos professores com legislação diária a conta-gotas? Não sei se a intenção é criar um ambiente de terror, mas o que é certo, é que tudo isto incomoda, desmotiva, e mais grave, gera um sentimento de revolta.

Eric Hobsbawm, historiador britânico, referia-se aos oficiais de topo que combatiam na Primeira Guerra Mundial no seu livro Era dos Extremos como indivíduos que nos seus gabinetes, longe da frente, moviam os seus soldados como peças de xadrez para a frente de combate, ordenando-lhe a invasão da trincheira inimiga. Para chegar a essa trincheira, os soldados teriam de atravessar a chamada "terra de ninguém", a travessia onde a barbaridade e o heroísmo cruzavam-se de forma fatalista para fugirem dos tiros dos soldados inimigos que os esperavam na trincheira contrária.

Assim, parecem as decisões de Vossa Excelência, cuja insensibilidade e distância que o seu gabinete proporciona, criam condições cada vez piores para os docentes em Portugal. O aumento do número de alunos por turma e dentro destas, as que estão estruturadas com um número definido de alunos com necessidades educativas especiais, cujo cumprimento está definido no despacho 5048B de 12 de abril de 2013, em muitos casos não é o que tem sido feito. Não são de modo algum decisões sensatas.

Os alunos são agrupados em turmas quase em forma de “latas de sardinha”, sem respeitar a diversidade que o próprio processo educativo implica. Esta falta de sensibilidade ainda está patente na insuficiência de recursos que os professores dispõem.

Não existe um trabalho sério de encaminhamento dos alunos para a formação mais adequada a estes. Vemos vários casos de alunos que desistem de cursos profissionais ou de cursos do ensino secundário por não terem obtido qualquer orientação vocacional por falta de meios humanos. Por que é que isto acontece? Porque as escolas não estão dotadas de técnicos suficientes para acompanhar os alunos. Os professores são, muitas vezes, os conselheiros e os orientadores que estes alunos precisam.

O senhor primeiro-ministro tem de reconhecer e valorizar o papel do professor. Eu e muitos colegas docentes sabemos as batalhas que diariamente travamos para fazer com que alunos sinalizados como problemáticos venham à escola. Em muitas situações, e todos nós sabemos, a escola é o único local onde vários jovens conseguem encontrar alguém que olhe por eles, desviando-os de comportamentos de risco. Recordo-me várias vezes de ouvir técnicos da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) queixarem-se da falta de meios de atuação perante o número crescente de casos. Muitas vezes é a própria escola que tem de gerir com os seus escassos meios os seus alunos problemáticos.

O seu Governo e as suas políticas divergem do verdadeiro ideal da Educação. Todas estas situações exemplificadas impedem que o ensino seja de qualidade e, ao mesmo tempo, estão a despersonalizá-lo. Posso exemplificar-lhe de forma concreta um caso que acompanhei, num estabelecimento de ensino, em que uma turma do 7.º ano de escolaridade tinha 25 alunos, sendo que dois tinham necessidades educativas especiais e cinco eram de etnia cigana – que por possuírem características muito próprias, deveriam ter outro tipo de resposta proporcionada pelo nosso sistema de ensino. Parece-me que existem mais casos como este, espalhados por toda a rede pública de ensino.

Relembro ainda o senhor primeiro-ministro que o percurso social de um jovem pode ser determinado pelo tipo de acompanhamento que tem na escola. Pessoalmente, eu defendo a redução de alunos por turma. Existem teorias pedagógicas que confirmam a minha tese, de que turmas com um número reduzido de alunos permite um apoio
personalizado e acompanhado ao estudante. Eu próprio experienciei isso.

Tudo isto denota que o senhor primeiro-ministro demonstra pouco interesse em ter jovens educados e formados com qualidade. O ideal é poupar! Estamos novamente perante o tal “general” que despacha exércitos de professores para as fileiras do desemprego juntando-se a tantos outros setores fustigados por uma crise cuja resolução ainda parece
estar longe.

Seguidamente, o seu ministro da Educação e da Ciência, Nuno Crato, aproveita a legislação produzida, de acordo com o decreto regulamentar n.º 3/2008 de 21 de janeiro desse mesmo ano, para dar início à prova de avaliação de docentes. De forma surpreendente, todos os professores são confrontados com uma tentativa de despojamento das suas habilitações para ensinar.

A meio de um período letivo, o ministro da Educação e Ciência pretende realizar uma prova que pretende emagrecer o corpo docente deste país. A justificação dada para esta prova aparece com a capa de que é necessário avaliar a qualidade dos conhecimentos dos docentes. Eu pergunto: Não será apenas uma tentativa de reduzir o número de trabalhadores dependentes do Ministério da Educação?

Senhor primeiro-ministro, todos os professores contratados são profissionalizados pelas universidades e institutos politécnicos tutelados pelo Ministério da Educação e da Ciência e tiveram de frequentar aulas, fazer exames. No meu caso, em particular, obtive classificação positiva em 50 exames realizados durante os quatro anos do curso de História. Aprofundei conhecimentos e fui avaliado por um professor enquanto aluno estagiário numa escola secundária pública durante o ano letivo de 2007/2008, sobre o qual paguei propinas. A caminho de seis anos de atividade como docente profissionalizado no grupo de recrutamento 400 - História, serei obrigado a fazer uma prova de avaliação de conhecimentos.

Até ao momento em que estou a redigir esta carta, não tenho qualquer informação sobre o local onde será realizada, a forma de pagamento da taxa, sobre a qual já irei retratar e, finalmente, e mais grave, não tenho qualquer referência para estudar porque, a cerca de um mês da data de realização da prova, não existe um guião para a preparação da dita avaliação.

Senhor primeiro-ministro, quando se prepara uma prova de avaliação, pelo menos eu faço-o, menciono os conteúdos para estudar com a devida antecedência para o aluno(a) se poder preparar convenientemente e apresentar dúvidas que serão devidamente esclarecidas pelo(a) docente em tempo útil.

A taxa, essa, um pagamento de 20 euros para fazer a dita prova, é uma forma que, no mínimo, descredibiliza todo este procedimento. Não faz qualquer sentido que, professores profissionalizados já detentores de tempo de serviço tenham de
pagar uma taxa para realizar uma prova para obter uma certificação que já foi garantida no final da sua licenciatura ou do seu mestrado. É novamente a frieza do seu “general” que no seu gabinete engendra planos para destituir os professores da sua habilitação de ensinar, com um plano mesquinho e feito à pressa como se tratasse de um aluno do 1.º ciclo que tem de entregar uma composição ao docente sem ainda dominar as técnicas de escrita.

Senhor primeiro-ministro, esta prova pode pôr em suspenso milhares de vidas que foram alicerçadas e construídas de mãos dadas com a escola pública em Portugal. Para muitas pessoas poderá ser o fim daquilo que tanto gostam de fazer. De forma fria e cruel, o senhor primeiro-ministro é conivente com estas medidas que não visam testar a competência pedagógica e científica dos docentes, mas sim eliminar o “excedente” que os seus correligionários julgam existir. Eu e outros professores somos esse “excedente” e apenas queremos continuar a fazer com condições aquilo de que gostamos.

Desta forma, peço-lhe, apelando à sua humanidade, se é que ainda existe, que reponha a justiça e o bom senso, e use os seus poderes enquanto primeiro-ministro eleito pelos cidadãos eleitores deste país para acabar com esta atrocidade aos professores.

A História de Portugal tem episódios de grandeza, heroicidade e tenacidade. Enfrentámos crises e vencemos. Vencemos uma ditadura e implantámos uma democracia. Homens e heróis de Portugal usaram a palavra como expressão máxima de
liberdade, a Primeira República defendeu o ideal da educação num país que à data da sua implantação tinha cerca de 75% de analfabetos. Hoje, já são poucos os analfabetos, mas ainda prolifera a mediocridade, sobretudo naqueles que nos governam.

Esta política educativa destrói o ideário de 1910 e apaga o ideal da democratização do ensino preconizado no 25 de abril de 1974.

Senhor primeiro-ministro, eu disse antes que a palavra é o principal instrumento da educação, e essa palavra é o único recurso que garante o sucesso de qualquer jovem nesse ideal de educação. Não queira destituir-nos desse único poder.

Esta carta é um grito, é uma expressão de um cidadão que possivelmente representará um vasto conjunto de cidadãos que também são professores e que estão ligados ao ensino público português. Termino esta carta mencionando que subscrevo
tudo o que foi referido, com a consciência de que usei a arma mais poderosa em tempos de liberdade: a palavra.

Assino e subscrevo o conteúdo desta carta,
João Tomé

O autor é professor de História e escreve segundo o Acordo Ortográfico.

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