Marc Márquez: Estreante, imberbe e campeão

Enquanto espera que a barba cresça, Marc Márquez irrompeu pelo MotoGP e sagrou-se o mais jovem campeão mundial da categoria rainha do motociclismo. Aos 20 anos, o piloto catalão ombreou de igual para igual com adversários que tinha por ídolos, na infância.

A forma de condução de Marc Márquez é espectacular
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A forma de condução de Marc Márquez é espectacular Jose Jordan/AFP
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A festa após o triunfo em Valência Jose Jordan/AFP
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Marc Márquez em Valência Jose Jordan/AFP
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O público vitoriou Marc Márquez após a conquista do título mundial de MotoGP Jose Jordan/AFP
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Marc Márquez durante os treinos Jose Jordan/AFP

Tem cara de miúdo, pose descontraída e sorriso fácil. E tem o título de campeão mundial de MotoGP. Marc Márquez conseguiu conquistar o título na época de estreia na categoria rainha do motociclismo, algo que só tinha acontecido uma vez na era moderna (em 1978, por Kenny Roberts, em 500cc). Fê-lo competindo com pilotos muito mais experientes, alguns dos quais cresceu a admirar. Como o ídolo Valentino Rossi (nove vezes campeão), Jorge Lorenzo (quatro títulos) ou Dani Pedrosa (três conquistas). Márquez, que já tinha sido campeão de 125cc em 2010 e de Moto2 em 2012, é também o mais jovem de sempre a terminar em primeiro no Mundial de MotoGP, com 20 anos completados em Fevereiro — apenas dois meses antes do primeiro Grande Prémio da temporada.

Apesar da sua juventude e do estatuto dos seus concorrentes, Marc Márquez não demorou a causar impacto no MotoGP. Na primeira corrida, no Qatar, foi ao pódio. Duas semanas depois, nos EUA (Austin, Texas), não fez a coisa por menos e obteve a primeira vitória. E foi esgotando os adjectivos. O jovem piloto catalão não precisou de período de adaptação à categoria principal – começou o ano a ser apelidado de “miúdo Márquez”, revelou-se o “genial Márquez” e acabou como o “campeão Márquez”. Ao longo da temporada, apenas em duas ocasiões ficou fora do pódio: em Itália, devido a uma queda, e na Austrália, por causa de um erro da equipa Honda, que lhe custou a desclassificação.

Apesar desses imprevistos, esta foi, a todos os níveis, uma época de sonho para Márquez. E, até certo ponto, inesperada também. Dizia ao diário espanhol El País, antes da corrida de estreia: “O que vier será bem-vindo. Vou tentar estar o mais à frente possível, mas também é preciso ter paciência e ir passo a passo. Na segunda metade da temporada já teremos tudo mais controlado, mas por agora vai-nos custar um pouco mais”. Discurso para moderar as expectativas ou reflexo da pose descontraída do jovem catalão? Talvez um pouco dos dois.

“Há muito tempo que não havia no MotoGP um talento deste nível”, disse ao PÚBLICO o português Miguel Praia, que entre 2007 e 2011 participou no Mundial de Supersport, a categoria anterior à classe rainha. É como se a velocidade em duas rodas corresse nas veias de Márquez. Após insistir com os pais, teve a primeira moto aos quatro anos. Foi um presente de Dia de Reis, ao qual o pai teve de adaptar umas rodinhas iguais às que se usam para aprender a andar de bicicleta. “A família respira corridas. Já nascem naquilo”, notou o presidente da Federação de Motociclismo de Portugal, Manuel Marinheiro, recordando que Marc tem um irmão mais novo, Álex, a correr em Moto3.

A progressão de Marc foi natural. Começou pelas competições jovens, sagrou-se campeão catalão e foi trilhando um percurso ascendente, no qual o talento foi fulcral para lhe abrir portas, porque os pais — Roser é administrativa numa empresa de camionagem e Julià conduz escavadoras — não tinham os meios económicos para suportar as despesas da modalidade.

Comer para engordar
Estreou-se no campeonato espanhol de velocidade em 2006-07, com uma moto especialmente adaptada a ele. O depósito era mais baixo do que o normal, a posição do assento mais próxima do guiador e as manetes eram de bicicleta, porque as suas mãos eram demasiado pequenas para as de moto. Tinha também um apoio no assento, para impedir que o piloto se movesse para trás quando acelerava. “Com 13 anos não sei se pesava 40 quilos. Foram umas invenções para me ajudar um pouco”, recordava Márquez. Em 2008, ano da sua estreia no Mundial de 125cc, passou por um regime alimentar que tinha por objectivo aumentar a sua massa corporal — e, assim, diminuir o lastro (17 quilos) que precisava de levar na moto, para atingir o peso mínimo exigido.

Avançamos nos anos, até à altura em que Marc Márquez chegou à principal competição do motociclismo mundial. Acabado de sair da adolescência, o catalão — que, legalmente, nem está habilitado a conduzir motos — teve a felicidade de ir parar ao sítio certo na altura certa. “Herdou o lugar de outro campeão, Casey Stoner, e por isso teve a sorte de ficar com uma equipa técnica muito experiente. Está com a melhor moto e na melhor equipa. Mas Márquez é talento puro e duro”, explicou Miguel Praia.

O franzino piloto nascido em Cervera, localidade a cerca de uma hora de Barcelona, teve de fazer trabalho físico para conseguir controlar a imponente moto de 1000cc que passou a pilotar. O veículo pesa uns 160 quilos, enquanto Márquez anda pelos 59 quilos de peso. “Nos primeiros testes, na Malásia, vi que me faltava força para conduzir esta moto”, admitiu, confessando que no início sentiu dificuldades em alguns circuitos. As diferenças são enormes, vincou Miguel Praia: “Entre o Moto2 e o MotoGP, a velocidade de passagem em curva e em recta, assim como as distâncias de travagem, são diferentes como da noite para o dia. Apesar de já conhecer os circuitos, as referências de moto para moto mudam”.

Foi uma adaptação feita à base de trabalho e à custa de várias dezenas de cotoveleiras. Conhecido pelas constantes mudanças de posição e inclinação que dá à moto, Márquez destrói vários pares de cotoveleiras em cada corrida. “Depende dos circuitos: nalguns toco mais com o cotovelo do que noutros, e habitualmente toco mais nas curvas à direita do que à esquerda. Em Austin, durante os treinos, tinha cotoveleiras de plástico que me duravam cinco voltas; mas reforçaram-mas com uma peça de magnésio, porque com titânio saltam faíscas”.

O discurso de piloto experimentado não encontra correspondência na atitude do miúdo de 20 anos. Márquez parece imune à pressão, mesmo quando a temporada chegou à fase em que o título já estava ao alcance. “O que diz a si próprio quando se olha ao espelho?”, perguntava-lhe o El País no início deste mês. Resposta desarmante: “Digo pouco... Vamos ver quando é que começo a ter barba”.

Pode ser imberbe, mas não falta coragem a Marc Márquez. “Os meus pais e o meu irmão dizem que mudo quando entro num circuito”, confessava, no ano passado, num programa da televisão catalã. Questionado sobre o seu nível de sangue frio em cima da moto, confessou: “Depende do momento. Dantes não tinha”.

A agressividade da sua condução valeu-lhe fama de piloto perigoso — e várias críticas. Melhorou quando chegou ao MotoGP, mas mesmo assim protagonizou incidentes que provocaram algum mal-estar. Como, por exemplo, o toque que provocou a queda do seu companheiro de equipa, Dani Pedrosa, em Aragão. “Seria de esperar que um piloto tão jovem tivesse respeito pelos mais experientes, mas ele não olha a meios para chegar ao lugar mais alto. E pisa até o risco do sensato. Os mais experientes não gostam de ser batidos por alguém tão jovem”, sublinhou Miguel Praia, notando a espectacularidade da condução de Márquez.

Superstições
Será Márquez um piloto perigoso? “De alguma forma, sim”, respondeu Miguel Praia. “Ele corre muitos mais riscos e coloca os outros em risco. Os outros pilotos acabam por não gostar. Apesar disso, tem cometido pouquíssimos erros, o que acaba por ser surpreendente. Valentino Rossi ou Jorge Lorenzo, nas épocas de estreia, cometeram os normais erros de juventude”. “Quando chega um piloto novo e que ganha, recebe sempre críticas. A agressividade é o que faz das corridas de motos um desporto aliciante. Márquez transmite uma sensação de controlo”, matizou Manuel Marinheiro.

Apesar disso, os pais de Marc Márquez admitem que pode ser bastante desconfortável ver o filho a correr a 300km/h. Mas defendem: “É o que ele queria”. A educação que deram ao filho mais velho nunca cedeu à facilidade de tolerar comportamentos que seriam inaceitáveis noutras circunstâncias. Exigiam-lhe boas notas, senão acabavam-se as corridas: “Se o mimássemos, podia perder-se”. O pai acompanha-o a todos os grandes prémios, enquanto a mãe fica a acompanhar pela televisão. “Sofro muito e às vezes choro sozinha”, confessou à televisão catalã. “Quem disser que não sofre está a mentir”, completou o pai de Marc.

Mas não se livram de passar por alguns sustos. Em 2011, antes do Grande Prémio da Malásia em Moto2, o jovem catalão sofreu uma queda violenta que o impediu de alinhar na corrida e lhe custou o título mundial da categoria. Na sequência do incidente, sofreu enjoos e perda parcial de visão. Durante várias semanas sofreu de diplopia (ou visão dupla), que só seria resolvida com uma intervenção cirúrgica oftalmológica.

Marc Márquez superou as contrariedades e fê-lo da forma mais convincente possível — com um título de campeão mundial. Na hora da verdade, o catalão reconhece que se agarra aos pequenos rituais pessoas. “Supersticioso? Não... Pouco, pouco. A minha única mania é usar sempre roupa interior azul para os treinos e vermelha para a corrida. É a única. É estranho, mas é assim. O resto são hábitos: calçar sempre a luva direita primeiro ou subir para a moto pelo lado esquerdo. Se me fizerem subir pela direita quase não consigo fazê-lo. São costumes”, resumiu o jovem piloto.

“O segredo da época que ele fez é que nunca ninguém lhe pediu qualquer resultado, nem tinha pressão de andar na frente. Basicamente esteve descontraído, porque ninguém lhe colocou peso nos ombros, e divertiu-se a andar depressa”, avaliou Miguel Praia.

E poderá Marc Márquez ser o protagonista de uma nova era de domínio no MotoGP, como a protagonizada por Valentino Rossi (que conquistou sete títulos na categoria rainha entre 2001 e 2009, cinco deles de forma consecutiva)? “Não acredito que domine a próxima década do MotoGP, mas sem dúvida vai ser um protagonista”, confessou Miguel Praia. Uma opinião corroborada por Manuel Marinheiro: “É impossível dizer se vai ganhar sete títulos, mas que vai ser campeão não tenho dúvidas.”

Está nas mãos do jovem catalão emular os feitos do seu grande ídolo de infância. O primeiro título já mora em Cervera.
 
 
 

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