Promessas de diálogo em Moçambique, um país “onde ainda não houve reconciliação”

Governo e Renamo dizem privilegiar o diálogo. Mas mais do que isso são precisas cedências, dizem analistas. “A tensão actual é um sinal de que os motivos por trás da guerra civil não estão resolvidos.”

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Guebuza reconheceu que Moçambique vive “momentos de ameaça à paz” CARLOS LITULO/AFP

A expectativa e desejo do politólogo moçambicano Domingos do Rosário era ver o seu país em paz. A tensão, latente nos últimos seis meses, e agora real, é a expressão visível do verdadeiro retrato que traça de Moçambique. “Um país onde ainda não houve reconciliação.”

Os desenvolvimentos dos últimos dias – com a tomada pelo Exército de Moçambique do quartel-general da Renamo na província de Sofala, a fuga do seu líder, Afonso Dhlakama, para lugar incerto e a declaração do movimento de que o tratado de paz de 1992 chegou ao fim – não o surpreendem.

“Os motivos que estiveram por trás da guerra civil [entre 1976 e 1992] não estão resolvidos”, acrescenta. E isso explica, em parte, a tensão actual. “Esses problemas tinham sido adiados com o Acordo Geral de Paz [assinado em Roma em 1992] e ressurgiram agora com a subida ao poder da ala mais radical da Frelimo”, a ala do líder do partido e Presidente da República, Armando Guebuza, diz por telefone a partir de Maputo, onde lecciona na Universidade Eduardo Mondlane.

A reconciliação não vive só das palavras, mas dos actos, defende: “Enquanto os homens da Renamo forem tratados como ‘bandidos armados’, enquanto os homens da Renamo integrados não puderem subir na hierarquia do Exército e da Polícia, não haverá reconciliação.”

No culminar de seis meses de ataques da Renamo contra elementos da polícia ou camiões em cortes de estradas e acções armadas (algumas das quais com mortos e feridos), as Forças Armadas de Moçambique tomaram de assalto a base mais importante do movimento e principal partido da oposição. Para isso, invocam as “provocações” da Renamo, que, por seu lado, denuncia a fraca disponibilidade do Governo para dialogar.

A Renamo reclama uma partilha dos benefícios da paz e uma revisão eleitoral que alega favorecer o partido maioritário. Apesar das ameaças e do anúncio de um boicote às autárquicas deste ano e às eleições gerais do próximo ano, as negociações foram retomadas em Maio. As várias rondas não permitiram aproximar as duas partes.

“Vinte anos depois do Acordo Geral de Paz, Moçambique não merece voltar a viver o clima que viveu nos anos a seguir à independência em 1975”, lamenta Domingos do Rosário. Um clima de medo e insegurança, mesmo sem uma aberta declaração de guerra.

Domingos do Rosário doutorou-se em França e é agora professor em Ciência Política na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Antes, foi um dos responsáveis do Observatório Eleitoral, no tempo em que a Renamo ainda dava luta nas eleições. Em 1999, o partido de Dhkalama movimentava multidões nos comícios e conquistou mais de dois milhões de votos. Dez anos depois, esse número caía para 650 mil. Pelo meio, Joaquim Chissano deixou de ser líder da Frelimo e do país. O empresário e homem forte do partido Armando Guebuza ocupou o seu lugar em 2004.

Chissano vs Guebuza
Domingos do Rosário lembra o que, “em tempos e várias vezes”, leu nos jornais: Dhlakama a lamentar a saída do antigo Presidente Joaquim Chissano. “‘Com o meu amigo Chissano, conversávamos, dialogávamos. Com o Presidente Guebuza, não há diálogo. Ele só está preocupado em fazer negócios’ – dizia Dhlakama.”

Tal como Domingos do Rosário, o analista Joseph Hanlon, director de uma newsletter sobre a actualidade moçambicana, volta atrás no tempo. Mas não com esperanças de que algo pudesse ou possa ser diferente enquanto Dhkalama controlar o poder da Renamo, impedindo mais protagonismo de outras figuras dentro do partido e limitando a actividade, a voz e o espaço de influência que poderia ter a Renamo. O analista expõe, num comentário publicado esta quarta-feira, “o fracasso” de Dhlakama em converter “o antigo movimento de guerrilha num partido político efectivo” mais de 20 anos depois do fim da guerra.

Dhlakama mudou-se há um ano para a base de Satungira, em Sofala, agora controlada pelo Exército. Com isso, “tornou-se quase invisível”, acrescenta. Antes, o líder da oposição tinha trocado Maputo por Nampula, no Norte, afastando-se do centro político do país, mas aproximando-se de uma base de apoio social que foi perdendo em sucessivas eleições. Esse crescente vazio de acção política foi sendo colmatado por acções militares violentas.

Durante a presidência aberta que realiza, desde o início desta semana, à província de Sofala, epicentro do conflito, Guebuza reconheceu que Moçambique vive “momentos de ameaça à paz”, recordou a importância do tratado de paz, ao qual a Renamo anunciou ter posto um fim, e frisou que a Constituição “não admite que haja dois exércitos, duas ordens em Moçambique”, numa alusão a uma guarda armada do líder da Renamo. Citado pela Lusa, disse que a actual crise representa um teste aos moçambicanos e à sua vontade de paz e desenvolvimento.

Nos últimos dois dias, Governo e Renamo, ambos garantiram, através dos seus representantes, privilegiar o diálogo. Domingos do Rosário reage com cepticismo: “É preciso passar das palavras aos actos. É preciso Guebuza dizê-lo a Dhklama e aos seus homens, directamente.” Por outras palavras: é preciso um novo frente-a-frente e são necessárias cedências.
 

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