O que moldou as famílias portuguesas desde 1864

O PÚBLICO recolheu os números do estado civil de todos os censos realizados em Portugal, desde 1864: neles está o retrato das mudanças da sociedade. Hoje as decisões estão cada vez mais à margem dos registos.

Varões e fêmeas eram os termos usados no primeiro censo realizado em Portugal, em 1864, para contar os homens e as mulheres, no total da população: eram dois milhões de varões e 2,2 milhões de fêmeas. Citando o primeiro recenseamento português – e mantendo precisamente a escrita da época – assim se resumia o estado civil: “A differença entre viuvos e viuvas é mui sensível. Ha mais de duas vezes mais viuvas que viuvos. Os homens recasam-se mais que as mulheres; as mulheres sobrevivem mais aos maridos, que os maridos ás mulheres, o que está de acordo com a maior somma de agentes destruidores que assediam o homem”.

Num só volume encadernado, com um custo total de 7295 réis por cada “1000 almas”, o primeiro censo contava três estados civis (solteiros, casados e viúvos). Aprofundavam outros detalhes como a distribuição dos homens e das mulheres no país: os “districtos” do interior eram os “mais favorecidos pelo predominio dos varões”, enquanto que os da “orla maritima” eram “aquelles em que o elemento masculino é mais escasso”.

Hoje, 147 anos passados entre o primeiro censo (1864) e o mais recente (2011), temos 15 recenseamentos (disponíveis online). O Gabinete dos Censos do Instituto Nacional de Estatística (INE) refere que estas são as operações estatísticas “mais complexas e dispendiosas que qualquer país pode realizar”. Esse peso leva a que se realizem de dez em dez anos.

O último recenseamento, realizado em 2011 e publicado no ano passado, motivou a recolha alargada dos dados do estado civil, feita pelo PÚBLICO no âmbito de um projecto de investigação em jornalismo computacional (REACTION). Outros motivos como a diminuição dos divórcios (quase 3% face a 2010) e dos casamentos (10%), ou o aumento uniões de facto (de 7% para 13%, de 2001 para 2011), justificaram a recolha dos dados e o seu enquadramento num período de tempo mais alargado.

Olhar para os números em perspectiva torna visível o peso de cada estado civil face à população. Vêem-se as oscilações entre mulheres e homens (sempre houve mais viúvas que viúvos e mais divorciadas do que divorciados, por exemplo) e vêem-se os principais picos, sobretudo nos casamentos e nos divórcios, que hoje, com mais distância temporal, podem ser explicados e justificados à luz de mudanças na lei ou da evolução da sociedade.

Recuar até às primeiras contagens de pessoas separadas ou divorciadas leva-nos até ao ano de 1900. Foi nesse recenseamento que se incluíram, pela primeira vez, os números de pessoas separadas judicialmente: eram cerca de 2500 (mais mulheres que homens). No recenseamento seguinte, que saiu em 1911 e não em 1910, dada a turbulência criada pela implantação da República, aparecem os primeiros divorciados: 2685. Assim surgia uma segunda nova categoria no estado civil que não deixaria de crescer no século seguinte: em 2011, contaram-se cerca de 594 mil divorciados, o que significa uma passagem de cinco divorciados por cada 10 mil habitantes (em 1911) para 562 por cada 10 mil (2011).

Deixar o tempo falar
“Existe uma precipitação de análise com dados de um só ano. É a tendência que deve ser lida, não um número”, sublinha Maria João Valente Rosa, demógrafa e directora da Pordata, afirmando ser necessário deixar o tempo falar. Também a socióloga Anália Torres, professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e autora de livros sobre o casamento e o divórcio em Portugal, reforça a ideia. “Os comportamentos vêem-se a longo prazo”.

É nesse sentido que a quebra no número de divórcios em 2011 – a última quebra tinha ocorrido em 2005 – pode ser vista de diferentes formas. Apontar as dificuldades económicas dos casais como causa pode estar correcto, mas nada o garante. “A crise pode jogar nos dois sentidos”, sublinha a socióloga Maria das Dores Guerreiro, professora no Instituto Universitário de Lisboa (IUL-ISCTE). Ou seja, a crise pode levar casais que consolidariam a ruptura conjugal a terem de ficar juntos ou, inversamente, alimentando a conflitualidade e levando à ruptura.

Foi o tempo que mostrou a outra principal tendência: a quebra dos casamentos. “Sobretudo os católicos, porque os casamentos civis mantêm-se sensivelmente os mesmos”, sublinha a directora da Pordata. De acordo com os censos, o número de casados aumentou até 1981. É no recenseamento de 1991 que se vê a primeira quebra. Outros dados do INE mostram a descida acentuada dos casamentos nos últimos anos: em 1995, registaram-se 65 mil (69% católicos, 31% civis); em 2011 o número passou para 36 mil (40% católicos e 60% civis).

Aos vários motivos que fizeram evoluir o conceito de casamento, junta-se a mudança de percepção em relação ao tempo de vida. “O dilatar da vida faz com que se imaginem mais projectos”, diz Maria João Valente Rosa, sublinhando o facto de uma vida mais longa aumentar a esperança de a conseguir refazer, mesmo após um divórcio.
 
De varões e fêmeas a homens e mulheres
Paralelamente, e por trás de uma ruptura com o tradicionalismo da sociedade portuguesa, surgem novas formas de conjugalidade. “O tradicionalismo dos anos 50 e 60 estava nos valores, na família, no casamento. Quem mandava era o homem”, lembra Maria das Dores Guerreiro. Assim, termos como “varões e fêmeas” inseriam-se num contexto que só viria a conhecer “os primeiros ecos de modernidade” no início dos anos 70.

Exemplos de como era vista a mulher e o homem estão nas análises feitas no primeiro recenseamento. Explicavam-se as diferenças entre o número de mulheres e homens: “A proporção dos dois sexos está, na differença, em perfeita harmonia com os habitos e officios que um e outro tem no consorcio social, os quaes, ao passo que levam longe do logar nativo em busca de aventuras, instrucção e maior fortuna o homem, conservam a mulher mais presa ao tecto domestico.” Ou então, em 1890, e mantendo a ortografia original, explicava-se assim o maior número de viúvas do que viúvos: “Differentes rasões explicam esta differença: a mulher casa, em geral, mais nova do que o homem, e por isso tem mais probabilidades de lhe sobreviver; as viuvas tem menos facilidade do que os viuvos em casar segunda vez; e, finalmente, a vida media das mulheres é mais longa do que a dos homens.”

Outros factores externos, analisados nos censos, explicavam as variações na população, como em 1920, quando o défice se deve em parte à epidemia de gripe pneumónica em 1918 e à Primeira Guerra. “Se a vida normal do povo não voltar tam cedo a ser convulsionada por qualquer crise violenta […] e, se, como é de esperar, progressivamente forem melhoradas as condições de vida do povo, facilitando-se a nupcialidade, e, […] deminuindo-se o índice de mortalidade […] é de prever que a população do Continente e Ilhas atingirá a cifra de dez milhões de habitantes no decénio de 1980-1990”.

A população não chegou aos dez milhões nesse decénio e os termos varões e fêmeas seriam ainda utilizados até ao recenseamento de 1940. Como explica o Gabinete dos Censos, os questionários vão sendo “adaptados a cada época em que se realizam” e as estatísticas vão sendo “adaptadas às necessidades de informação decorrentes das próprias transformações da sociedade”. “Em 1940, os padrões de família eram diferentes dos de hoje e as variáveis a inquirir também”.

À margem dos registos
Os divorciados nunca deixaram de ser contados, desde 1911, mas o último recenseamento trouxe mudanças: passou a ser registado o estado civil legal e não o estado civil de facto como anteriormente. “Em 2011, a variável estado civil legal, obrigatória por regulamento comunitário, e a variável união de facto substituem a variável estado civil de facto (em 1991 e 2001)”, esclarece o o INE. Essa alteração dificulta uma comparação directa e exacta entre as mesmas categorias dos vários anos, até porque pela primeira vez passaram a ser contados os casamentos e as uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo.

Só que os dados não contam tudo. “Há dados que não são suficientes para medir ou cobrir a população interna”, sublinha Sofia Aboim, socióloga, investigadora do Instituto de Ciência Sociais da Universidade de Lisboa (ICS). “Estávamos também à espera para saber quantos casais vivem em união de facto e esses resultados não foram publicados”. O Gabinete dos Censos esclarece que os questionários “foram objecto de apreciação” pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, que “emitiu decisão no sentido de eliminar-se a informação respeitante às variáveis relativas a união de facto, entre pessoas do mesmo sexo e entre pessoas de sexo diferente, por se enquadrarem na esfera de dados sensíveis, designadamente de dados sobre a vida privada”.

A investigadora refere ainda existir em Portugal “um certo tabu” em estabelecer uma categorização em termos de conjugalidade. Entre os dados estatísticos, lembra Sofia Aboim, também ficam outras informações, como ser impossível hoje contar as dissoluções das uniões de facto, visto não serem registadas.

Dentro do que ficou nos registos, ao longo de 147 anos, estão várias decisões. Casar, não casar, pôr fim a um casamento, entrar numa união de facto ou voltar a casar, após ficar divorciado ou viúvo, foi o que criou e recriou milhões de famílias. O que os dados não contam são as histórias por trás de cada número.

O PÚBLICO recolheu dados sobre casamentos, divórcios e as decisões que definiram o perfil da família portuguesa desde 1864. São várias histórias, em paralelo com a visão de sociólogos, um psicólogo, uma demógrafa e uma jurista, em cinco trabalhos que serão publicados até Domingo com uma reportagem na Revista 2 nos dois concelhos do continente com o maior e menor número de divórcios por 100 casamentos em 2011. 

 


 
 

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