Jesus é um rapaz do meu bairro

1. Na primeira semana de Novembro, o poeta palestiniano Najwan Darwish saiu de Jerusalém para o Morro dos Prazeres, Rio de Janeiro. Era a primeira festa literária das favelas, a FLUPP, com vários convidados internacionais. Najwan viu a vista lá de cima: o verde de Santa Teresa, os arranha-céus do Centro, uma nesga da Guanabara. Por trás da cabeça dele, em letras garrafais, estava escrito UPP: Unidade de Polícia Pacificadora. Do lado direito da paisagem, uma piscina abandonada por anos de tiroteio. Os Prazeres eram um morro de bala perdida. Agora são um palco com um sírio, um alemão, um palestiniano, todos a falarem de como é escrever no meio da guerra.

2. — Tudo na vida é político, e escolher que não se vai ser político é político — diz Najwan, no palco dos Prazeres. Vim a esta sessão só para o conhecer. Trocámos mails em 2008, quando Mahmoud Darwish morreu. Najwan não era da sua família, o apelido é um acaso. Não fica pesado ser poeta com o mesmo apelido do maior poeta palestiniano? Eu tinha de escrever o obituário de Mahmoud Darwish para o PÚBLICO e falei com Najwan, nascido em 1978. Voltei a escrever-lhe em 2011 da Praça Tahrir, pedindo contactos de poetas egípcios e ele respondeu logo. Antes do Rio de Janeiro nunca nos tínhamos encontrado. 

— Pode haver um poema político excelente e um poema sobre outro planeta excelente — continua ele, no palco. — A pós-modernidade decretou que a boa arte não pode ser política, mas isso é ridículo. O assunto não importa.

3. O moderador pede-lhe para falar do PalFest, o festival palestiniano de literatura que Najwan ajuda a organizar, escolhendo escritores.

— Basicamente são dois autocarros para chegar às pessoas, já que as pessoas não podem chegar ao festival. Porque há um muro, “checkpoints”, cartões de identidade de várias cores, explica ele à plateia, a mais jovem e mestiça plateia carioca que um festival literário pode ter. E remata:

— Como sabem, Jesus é um rapaz do meu bairro. Nasceu em Belém e foi crucificado em Jerusalém.

4. Leitura em árabe, com “encore” a pedido da plateia. É o fim do debate, mas não para Najwan, o mais requisitado. Defensores da Palestina, estudantes de árabe, poetas por estrear, quase uma fila em volta da mesa onde nos sentámos.

— Gosto muito de Mahmoud Darwish — diz-lhe um rapaz, à despedida.

— Estou a pensar mudar de nome — responde Najwan. — É aborrecido viver toda a vida com o mesmo nome.

5. Como vai começar um novo debate, sentamo-nos nos bastidores, empoleirados em dois bancos altos, a falar do rapaz do bairro dele. Em qualquer lugar do Rio nos habituamos a ver, de costas, de frente, sempre o sovaco do Cristo, tanto que já não ocorre perguntar se aquilo é humano. Mas Najwan teve uma epifania ao chegar.

— Ó meu Deus, ele está na montanha! Todo o tempo na montanha crucificado. Dias e noite crucificado. As pessoas que fizeram a estátua não pensaram nisso, mas quando o vejo crucificado penso sempre nisso: devias voltar comigo para Jerusalém.

6. No fim do século XIX, muitos árabes, sobretudo libaneses e sírios, emigraram para o Brasil, incluindo poetas. O “bando andaluz”, como Najwan diz.

— Continuaram a escrever em árabe e nós vemos a influência do Brasil no que eles escreveram. Quando fui convidado para vir aqui, senti uma nostalgia do país onde eles estavam a sentir nostalgia.

Mas Najwan nunca ouviu falar dos netos desses árabes que já escreveram em português, e criaram em português o que não havia, como Raduan Nassar. Então, acima do som da chuva e do debate seguinte, falamos de “Lavoura Arcaica”, do que Raduan escreveu e de como há muito deixou de escrever para se dedicar a uma fazenda que há pouco vendeu, para se dedicar agora ninguém sabe a quê.

— E como é que se fala com ele? — pergunta Najwan.

Aquela pergunta que algumas pessoas fazem sobre Herberto Helder.

7. O PalFest, o tal festival literário da Palestina, é recente, de 2008.

— A abertura e o fecho são sempre em Jerusalém, mas vamos a quatro ou cinco cidades, Nablus, Nazaré, Belém, Hebron…

Ou seja, tanto territórios ocupados como cidades dentro de Israel com grandes populações palestinianas. E Gaza?

— Fomos no ano passado, através da fronteira com o Egipto, depois da revolução da praça Tahrir. Mas tivemos de lutar para isso.

A Primavera Árabe tem passado por várias estações, no caso da Síria é um longo Inverno. Mudou coisas, a começar pelo Egipto. Não mudou coisas, a começar pela Palestina. Vista do exterior, desde o início da Primavera Árabe a Palestina hibernou.

— Não mudou nada, nada — reforça Najwan. — Mas a longo prazo a mudança dos poderes no mundo árabe vai beneficiar os palestinianos, porque Israel beneficiava desses regimes.

 

8. E Jerusalém, onde não estou há quase quatro anos, como vai? É que Najwan não vive só em Jerusalém, vive na Cidade Velha de Jerusalém, dentro das muralhas.

— Tenho um poema chamado “Quds” [Jerusalém, em árabe]. Diz: “Quando te deixo / fico uma pedra. / Quando volto / fico uma pedra.” Não é uma cidade, é a caixa negra do mundo. Seja onde for que estiver, sinto-me nessa caixa negra.

 

9. Najwan saiu do Morro dos Prazeres na segunda semana de Novembro. Chegou a Jerusalém ao mesmo tempo que a guerra. No momento em que termino esta crónica vigora um cessar-fogo, depois de 162 mortos e mais de mil feridos. Leio no “Globo” que “Israel vai dar uma chance ao cessar-fogo”, palavras de Netanyhau. Tenho de escrever a Najwan, a perguntar o que ele acha.

 

(Esta crónica vai estar de férias durante o mês de Dezembro.)

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