“A Internet pode ajudar a democracia por ser descentralizada”

Ethan Zuckerman, o fundador do Global Voices, um site que é uma comunidade mundial, diz que ainda há muitas zonas do mundo sobre as quais estamos completamente em branco. Encurtámos distâncias com a Internet, mas não assim tanto. Terceira entrevista da série sobre a Internet.

Foto
Zuckerman diz que se surpreendeu com o facto de a Internet se tornar tão fácil e comum Joi Ito/CreativeCommons

Fundou, com Rebecca MacKinnon, o projecto Global Voices em 2005 – um site que é uma comunidade de bloggers de todo o mundo, incluindo de países de que raramente se ouve falar.

Colaborador de vários projectos, como o MIT Center for Future Civic Media, e investigador do Berkman Center for Internet and Society da Universidade de Harvard, Estados Unidos, Ethan Zuckerman explica nesta entrevista que o objectivo do Global Voices é relatar o que as pessoas estão a discutir online, não propriamente relatar os acontecimentos em si. Sem pretensões de ser um media tradicional, o Global Voices afirmou-se como uma fonte de informação importante para quem quer ouvir vozes diferentes, até porque, como Ethan Zuckerman considera, estamos quase sempre a receber informação das mesmas fontes.

O que é que o surpreendeu mais no avanço da Internet desde que a começou a usar?

Comecei a usar a Internet em 1989. A grande surpresa foi o facto de o uso da Internet se ter tornado tão comum. Nos finais dos anos 1980, princípio dos 1990, a Internet era usada por um número muito reduzido de pessoas e os que a usavam eram tecnicamente sofisticados. A ideia de que se ia tornar tão fácil e comum que começaria a substituir algumas indústrias foi uma surpresa: é quase inevitável que em dez anos o telefone de voz desapareça, a televisão está a começar a desaparecer, a indústria musical mudou tão rapidamente. Para mim o pensamento de que a Internet se ia tornar tanto parte do quotidiano que até as pessoas comuns a iam usar – e não apenas os geeks dos computadores – ainda me fascina. Mesmo que as pessoas se queixem de que há coisas difíceis de usar na Internet, a diferença entre o que era há 20 anos e agora é brutal.

Na sua intervenção nas conversas TED (em Julho de 2010) diz que, embora a Internet tenha aproximado o mundo, continuam a existir enormes distâncias entre zonas do globo. Quanto acha que mudou desde 2010?


Acho que o exemplo mais flagrante foi a Primavera Árabe. Foi muito interessante e entusiasmante ver que as pessoas em todo o mundo tiveram a oportunidade de assistir a uma mudança tão dramática no Médio Oriente, região dominada por ditadores, ver quão rapidamente essa situação mudou e ser possível haver troca de correspondência entre as pessoas sobre o que se estava a passar. Lembrou a muitos o quanto a paisagem está a mudar.

Há outra forma de ler isto, que é dizer que a Primavera Árabe foi um excelente lembrete de que não conhecemos o resto do mundo como deveríamos. Basta pensar em como e quando a história da Tunísia aconteceu, nos finais de Dezembro de 2010. Estava documentada na Internet, há vídeos no Facebook, mas fora da Tunísia e da diáspora tunisina muito pouca gente prestou atenção. No final, acabou por ser documentada, mas, por exemplo, o New York Times não menciona Mohamed Bouazizi [o homem que se imolou a 17 de Dezembro e desencadeou a Primavera Árabe] até Ben Ali cair [em Janeiro de 2011] – ou seja, escapou-lhes completamente. Para muitos a revolução na Tunísia era invisível: tínhamos a possibilidade de assistir a ela através da Internet, só que ninguém nos dizia para a ir ver a acontecer. Para mim isto é o fenómeno interessante: a informação está lá, se se souber procurá-la. É nisso que temos de pensar: como podemos usar melhor a Internet? Como podemos assegurar que estamos a ouvir este leque alargado de vozes?

Isto leva-nos a outra questão – sobre os “buracos negros” da Internet no mundo. Da sua experiência no Global Voices, onde acha que estão os maiores buracos negros?

Há duas razões por que não acedemos à informação. A primeira razão é que em algumas partes do mundo as pessoas têm mais coisas para fazer do que escrever. A segunda razão é esse sítio estar sob uma ditadura e o governo tornar mais difícil às pessoas escreverem e comunicarem. Durante muito tempo tivemos dificuldade em saber o que se passava na África francófona – especificamente no Mali, no Congo, na Nigéria. Estes países eram tão pobres, subdesenvolvidos e esta cultura de escrever online não existia nem nas elites, muito pequenas. Para o Global Voices era muito difícil fazer a cobertura desses países. De todas as nações, temos mais dificuldade em cobrir a República da África Central, país sobre a qual temos menos informação e não sabemos quem está a escrever online lá. Há países tão repressivos que tornam difícil as pessoas escreverem online. Até muito recentemente era o caso da Birmânia, que se abriu imenso no último ano – de repente, há mais informação e atenção sobre a Birmânia, mas antes tínhamos escasso acesso à informação através da diáspora e dos poucos visitantes. Na Coreia do Norte a Internet também não está acessível facilmente; na Guiné Equatorial, um país pobre e sob o poder de um autocrata terrível, só conheço uma pessoa corajosa que relata a partir de lá; na Etiópia os media são altamente controlados, há jornalistas a serem presos e muita gente que escrevia online foi ameaçada para se calar.

Onde é que é mais difícil escapar à censura e passar informação cá para fora?

Infelizmente a censura não é algo que possamos colocar numa escala linear. Mas em termos do que um país investe para controlar a liberdade de expressão é quase de certeza a China – só que a China tem 400 milhões de pessoas online, a maioria usa o Sina Weibo [rede tipo Twitter, com mensagens curtas], e os sistemas de controlo são muito difíceis de centralizar em tempo real – por isso vemos saírem cá para fora coisas como o debate sobre Bo Xilai [político envolvido num escândalo de corrupção]. Estas conversas podem ser controladas num dia ou dois, mas em tempo real há muita informação a circular. A China é muito agressiva em relação ao controlo de informação, mas, até de forma engraçada, não são muito bons nisso. Há outros países que são bastante agressivos – nações como o Vietname não são nada tímidas em mostrar como prendem qualquer pessoa que vejam como activistas que escrevem online. Isso cria o clima em que as pessoas simplesmente ficam com medo de usar essas ferramentas para ter certo tipo de conversas, mesmo que não exista uma censura agressiva em termos técnicos, como na China. O que a censura faz não é parar o discurso, mas distorce-o e torna mais difícil que lhe prestemos atenção. E vimos isso de maneiras diferentes.

Concorda com Evgueny Morozov, quando ele diz que a Internet ajuda regimes autocráticos?

Acho que Evgueny gosta de fazer barulho e muitas vezes escreve de uma forma que obscurece os seus argumentos, porque está tão ansioso em mostrar quão esperto é e quão estúpidas as outras pessoas são. Muito do que tem para dizer sobre países autoritários e a Internet é muito o inteligente, baseado em muita pesquisa e pertinente. É um erro terrível assumir-se que só porque o país tem Internet vai tornar-se mais aberto e democrático, porque muitas vezes é fácil os governos ganharem espaço e usarem a Internet para suprimirem a liberdade de expressão e democracia. Apesar disso, a longo prazo a Internet vai tornar a vida dos governos autoritários mais difícil e mais fácil para quem quer lutar contra o poder. A razão por que acho isso é o facto de a Internet tornar possível uma série de experiências a muitas pessoas que actuam independentemente umas das outras. Por exemplo, houve aqui nos Estados Unidos uma batalha contra legislação como a SOPA [Stop Online Piracy Act, em defesa dos direitos de autor], que era legislação para regular direitos de autor que iria colocar uma série de restrições na Internet. O movimento contra a legislação não era centralizado, não foi uma organização que disse: “Ei, vamos lá lutar contra esta lei.” O que aconteceu é que centenas de milhares de organizações e de indivíduos tentaram coisas diferentes e partilharam as suas técnicas, as suas histórias e no final chegámos ao ponto em que a Wikipédia decidiu fazer blackout – sabemos que isso teve um impacto enorme, porque no dia seguinte a maior parte dos que estavam a apoiar a lei recuou. Esta campanha altamente descentralizada é o oposto do controlo centralizado. Quando pensamos como é que a Internet pode ajudar a democracia, é o facto de ser descentralizada, de permitir que uma série de ideias circulem. Acho, por isso, que a posição de Morozov é exagerada, não penso que seja melhor para ditadores do que é para democratas. Mas o que diria é que nada é automático, tem de se trabalhar: se se quer que a Internet seja boa para a democracia, é preciso trabalhar para isso.

Na Global Voices construíram uma comunidade forte, de pessoas que escrevem para o projecto. Qual é o segredo para os media construírem comunidades fortes?

É uma comunidade forte, com 800 pessoas que escrevem para nós – e que não produz apenas o Global Voices, mas também outros projectos. E, quando alguém tem um projecto que deseja desenvolver, sabe que tem uma comunidade com a qual pode contar e colaborar – isso é que é tão poderoso. O que fez disto algo tão poderoso é que não tentamos concordar com tudo, mas garantir que a Internet é um sítio onde todos podem falar livremente. Queremos garantir que as vozes das pessoas são ouvidas. E isso parece ser a base comum, mesmo que discordemos em muitos outros pontos. Por exemplo, temos correspondentes fortes em Israel e talvez um dos mais fortes seja Gilad Lotan, que fala com o Exército israelita, mas que é amigo da equipa do Médio Oriente. A razão por que isto é possível é por terem uma base comum à volta desta ideia de que toda a gente merece ser ouvida. E há a editora, uma mulher incrível, Amira Al Hussaini, que defende que a nossa função é relatar aquilo que as pessoas estão a dizer – podem não gostar do que os israelitas estão a dizer, mas estão a trabalhar de forma incrível para nos dar essa perspectiva.

A Global Voices funciona, porque não temos de concordar com tudo – concordamos nesta ideia de que queremos mostrar o que se passa numa parte do mundo de onde vimos, garantir que os amigos e inimigos nesses países são ouvidos. Muitas comunidades online tentam persuadir as pessoas a fazer algo que elas não estão a fazer. Isso quase nunca funciona, porque não é necessariamente o que as pessoas querem fazer. No Global Voices quase todas as pessoas que escrevem já estavam a escrever online; pedir-lhes para escrever um pouco mais não é esticar muito a corda; quase toda a gente que faz traduções no Global Voices já estava a traduzir e pedir-lhes para traduzir material interessante não é exigir de mais. Às vezes, pode-se fazer algo realmente extraordinário, descobrindo pessoas que já estão numa dada direcção, guiando-as e dando-lhes um objectivo comum – e é isso que o Global Voices faz.

Como garante que não vai ter mais do mesmo, como refere em relação ao tipo de informação que procuramos, e que a informação que o Global Voices dá é rigorosa?

Não garantimos nem uma coisa, nem outra. No nosso melhor tentamos dar diferentes perspectivas sobre assuntos diferentes, mas nem sempre somos capazes de o fazer. Um exemplo em que falhamos constantemente: no Zimbabwe, as pessoas que escrevem online são grandes opositoras de Robert Mugabe e tendem a ser pessoas com mais dinheiro, com mais educação. Muito do apoio de Mugabe vem de áreas rurais e de pessoas que têm menos educação do que os que escrevem online. Estamos quase sempre a escrever a partir desse ponto de vista crítico – não gosto de Mugabe, mas acho que estamos a falhar.

Em relação ao rigor: o jornalismo trabalha de uma maneira específica, o nosso jornalismo é sobre o que as pessoas estão a debater online, não sobre o que se está a passar no mundo. Muitas vezes contamos com jornalistas para nos ajudarem a dar contexto, mas não temos os meios para enviar os repórteres aos sítios. Portanto, focamo-nos em algo muito diferente: nas conversas que as pessoas estão a ter, como é que as pessoas estão a reagir ao que está a acontecer. Algumas dessas conversas precedem uma nova história, às vezes têm nova informação antes de chegar às notícias – mas isso é a excepção. A nossa função é tentar relatar essa conversa da forma mais justa e rigorosa possível.

Dentro de dez anos, o mundo estará ligado à Internet durante mais tempo? Qual o impacto que isso irá ter?

A ligação à Internet não se irá espalhar de forma homogénea. Há algumas pessoas, neste momento, que já estão muito ligadas, pessoas que viveram em países diferentes, sabem línguas diferentes, que conhecem culturas diferentes. À medida que o mundo fica mais ligado, aqueles que têm a capacidade de perceber as culturas locais, de perceber as pessoas de diferentes backgrounds, de como o mundo vai ser ligado vão ser altamente bem sucedidos. Um exemplo: o CEO da Coca-Cola é filho de um diplomata turco, educado em todo o mundo, trabalhou nos Estados Unidos e é o tipo de pessoa que é capaz de trabalhar em países muito diferentes. A Pepsi respondeu contratando uma mulher indiana, educada primeiro na Índia e depois nos Estados Unidos, que trabalhou em várias culturas. Acho que se está a perceber que é preciso ter pessoas com grandes ligações para vencer neste mundo profundamente ligado. Os traços de personalidade, a forma de olhar o mundo, a capacidade de circular entre culturas é um novo tipo de competência que neste momento é raro e precioso. Não acredito que dentro de 10 anos toda a gente vá estar ligada; acredito que vá existir gente muitíssimo ligada que não é apenas do grupo dos ricos e com boa educação, mas pessoas criativas do mundo em desenvolvimento a tentar perceber como criar conexões entre movimentos internacionais.

Terça-feira entrevista a Evgueny Morozov
 

Sugerir correcção
Comentar