As viúvas iraquianas são a sombra da guerra que a paz preferiu esquecer

Existirão entre um a três milhões de viúvas no país
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Ninguém sabe quantas viúvas há no Iraque. São muitas e poucas recebem ajuda do Governo. Fatimah Khadum faz o que pode e a Cruz Vermelha também ajuda.

Entidar, que quer dizer "à espera", foi uma das primeiras iraquianas viúvas da nova guerra. "O meu marido morreu durante a invasão. Estava a trabalhar num moinho e os aviões americanos bombardearam o moinho e mataram-no."

Tem 24 anos e três filhos nascidos antes de Março de 2003, quando as bombas dos Estados Unidos lhe mataram o marido enquanto ele fazia farinha em Bassorá, a primeira cidade do Sul. Hussein, o mais velho, tem dez anos; Shazenade tem nove; Abdul Hassan sete.

Hoje, Entidar é uma viúva de sorte. Vive com a mãe, viúva da guerra com o Irão (1980-1988), e com os filhos numa casa alugada em Hayaniyah, um bairro conservador. Hoje, Entidar tem um trabalho e paga uma renda. Mas já foi como a maioria das viúvas, a viver com a mãe e o irmão e a cunhada e o sobrinho numa casa de duas divisões, sem saber como vestir os filhos. A sorte de Entidar foi Fatimah Khadum, fundadora da organização não governamental Iraqi Al-Firdaus (Paraíso) Society. A sorte de Fatimah foi o Comité Internacional da Cruz Vermelha, que há quatro meses iniciou um programa para ajudar viúvas de guerra em parceria com ONG locais.

Fatimah já fazia muito. A sua ONG dá cursos de alfabetização, faz campanhas de prevenção do cancro da mama, outras de sensibilização sobre os princípios constitucionais e até já deu aulas de "mediação por meios pacíficos" a polícias e soldados. Nunca recebeu nada do Governo, mas trabalha com o Governo. Dos partidos e das milícias que dominam o Sul só recebeu ameaças - por telefone, por escrito e entregues pessoalmente -, mas recusou parar ou aliar-se a quem a ameaça. Por isso, a Cruz Vermelha, que só colabora com grupos independentes, escolheu-a.

"Graças a Deus", é a frase que Entidar mais repete. Quando a Cruz Vermelha foi ter com Fatimah, ela foi ter com viúvas que conhecia e perguntou-lhes o que fariam se recebessem ajuda para iniciar um negócio. Entidar escolheu vender roupa para crianças, tecidos e utensílios de cozinha.

"Não tinha esperança. Não sabia fazer nada, por isso recorri à minha família", diz Entidar, que estudou até ser mãe e foi mãe aos 14 anos. "Agora estou muito feliz. É bom estar ocupada, ganhar o meu dinheiro. Agora é melhor. Podemos pagar mais coisas". A sorrir com um sorriso doce que já não vai voltar a mostrar.

Não é preciso saber quantas são as viúvas do Iraque para saber que este é um país de viúvas. Há quatro anos, no pico da violência sectária, 90 a 100 mulheres enviuvavam a cada dia. Entre 2005 e 2008, quando o Iraque parecia uma bomba humana, muitas mulheres fizeram-se explodir em atentados, como nunca antes em lugar nenhum. Dezenas eram viúvas.

Um milhão, três milhões

Hoje há entre um e três milhões de viúvas. Num país de 29 milhões, em que 40 por cento tem menos de 14 anos, basta saber isso para perceber que há demasiadas mulheres sozinhas com demasiados filhos para alimentar. Nas contas de Fatimah, "as mulheres são 60 por cento da população e metade são viúvas". Algumas "perderam o marido na guerra com o Irão, outras na guerra de 1991 e na revolta xiita que se seguiu, muitas nas explosões e assassínios".

A partir de um inquérito feito há dois anos, a Cruz Vermelha concluiu que entre as mulheres chefes de família em situação vulnerável só 10 por cento recebia pensão de viuvez, o que se explica pela burocracia, pela corrupção e por falta de fundos. Há um ano, a ajuda estatal chegava a 120 mil, sortudas, mas pouco: 70 mil dinares (45 euros) por mês mais 14 mil por filho não chega. Para a Cruz Vermelha, como nos explicou Hind, responsável da subdelegação de Bassorá para o programa Mulheres em Guerra, a linha de pobreza traça-se abaixo dos 230 mil dinares por mês.

Bassorá, capital do Sul desde que o Iraque é um país, já viu melhores dias. Falta peixe no Shat-al-Arab. o rio que liga a cidade ao Golfo Pérsico. Falta água. Falta trabalho. Falta electricidade. Falta tudo. Mas, como no resto do país, sobram viúvas e órfãos e há mulheres e miúdos a pedir na rua.

De boca em boca

Entidar compra o que vende no mercado Ashar, o maior da cidade. Sabe o que deve comprar e muitas vezes já leva encomendas. "As mulheres do bairro pedem-me artigos específicos. Nesta zona, as pessoas visitam-se muito. Conhecemo-nos todos."

Estreou-se como vendedora a 20 de Abril - "Graças a Deus" - e a sua loja é a sala em que nos recebe: um tapete no chão, almofadas, um frigorífico com bibelôs em cima (são jarras de roxos brilhantes, quase fosforescentes, e são para vender) e posters de imãs xiitas.

Abdul Hassan, sete anos e muitos dentes a menos, tem um sorriso tão doce que quase ilumina a sala - a luz falhou dez minutos depois de entrarmos, às quatro da tarde, e como a escuridão até refresca, o gerador ficou por ligar. "As crianças andam mais contentes." O mais novo dos filhos de Entidar entretém-se a ir buscar os artigos que a mãe vende e ela espalha-os pelo chão para os mostrar. Chegam panelas, rolos de tecido, cobertores, louça e muita roupa de criança. Shazenade distribui copos de água e latas de Pepsi pelas visitas. Abdul Hassan gosta de ajudar nas vendas.

"No primeiro mês, ganhei 240 mil dinares. O mês passado ganhei 600 mil. É suficiente. Pago 25 mil de renda."

Do Governo, Entidar não recebe nada e nunca tentou receber. A explicação é a mesma repetida por outras viúvas nesta e noutras cidades: "É preciso visitar muitos gabinetes diferentes para pôr o processo a andar. É preciso gastar muito tempo e andar de um lado para o outro e eu não podia, com os meus filhos pequenos".

Histórias felizes

As regras da Cruz Vermelha ditam que as mulheres aceites no programa sejam chefes de família viúvas de guerra com pelo menos dois filhos menores. Têm de apresentar uma proposta de negócio viável e a família tem de apoiar a ideia. A ajuda consiste em pagar o que cada mulher precisa para se lançar. Nada de especial, neste caso. A loja é a sala da casa e Entidar só precisava de saber que ia ter como pagar a renda.

Fatimah, lábios grossos e bem desenhados, sorriso bonito e aberto, acaba por aproveitar a visita para fazer umas compras: uma peça de tecido às flores, um fatinho de Homem-Aranha para o filho de oito anos e um de menina, saia e blusa amarelas. Entidar guarda as notas numa caixa de metal redonda com a imagem de uma nota de 100 dólares.

"O que eu gostava era de poder vender mais coisas. As mulheres pedem-me electrodomésticos, frigoríficos, por exemplo. Mas não tenho espaço nem dinheiro. Gostava de transformar esta sala numa loja de verdade. Se ganhar mais dinheiro, começo a vender electrodomésticos", diz.

A história de Entidar é uma história feliz como ainda há poucas em Bassorá. Este é um programa-piloto. "Estamos no princípio. Mas, na maioria dos casos, os resultados têm sido bons e temos já muitas histórias felizes", sublinha Hind. Dez, para ser mais exacto. "Para o ano, queremos estar a ajudar cem chefes de família", diz a iraquiana.

Pipocas e supermulheres

Há mais uma mulher em Bassorá que decidiu ser vendedora e montou uma mercearia em casa, "uma loja muito pequena". É das que têm feito menos dinheiro. "Comprou umas prateleiras e um frigorífico. Ganha 45 mil a 50 mil dinares por mês", diz Hind. É pouco. "Ela tem dez filhos. Passa o dia a tomar conta deles e vai espreitando por um buraco na parede que dá para a sala onde abriu a janela para fazer a loja. Tem sempre um bebé ao colo. Um olho nos filhos e outro na loja."

Outra mulher lembrou-se de vender pipocas e com pipocas não se pode falhar. Duas vão comprar vacas e ovelhas e é preciso esperar para ver se vão ter sucesso.

E, depois, há supermulheres, como a dona da fábrica de tijolos. Há quatro meses, vivia com o pai, os irmãos e os dois filhos e ajudava na contabilidade - o pai e os irmãos faziam tijolos. Quando Fatimah foi ter com Kamila, ela pediu à Cruz Vermelha dinheiro para comprar moldes e máquinas. Agora tem uma fábrica e paga salário ao pai e aos irmãos. Em Junho, fez 800 mil dinares de lucro.

São histórias como esta que Fatimah gostava de ajudar a multiplicar por Bassorá. E quando se conhece Fatimah, quase que se acredita que isso acabará por acontecer.

Fatimah quis fundar uma ONG ainda na faculdade, em 1995. "Mas, para o regime, qualquer tipo de associativismo era político e estava proibido. Só depois da queda pude avançar. Comecei com a minha irmã. Ela trabalhou comigo dois anos, até casar. Em 2006, decidi deixar entrar homens na associação. Na administração, hoje há três homens e duas mulheres, mas eu sou directora e a minha subdirectora é mulher."

Fatimah é outra supermulher. Abaya (túnica) e hijab (véu) negros, parece mais uma na multidão, mas só até começar a falar. Sobre Bassorá e o Iraque. Onde há viúvas a viver na rua e a pedir nos semáforos. Viúvas a viver em campos de atrelados e outras que ocupam divisões de antigos edifícios governamentais em ruínas. Viúvas que vivem com a família. Oito pessoas ou mais numa casa de duas divisões, como Entidar, antes do negócio.

Há viúvas que recebem alguns dinares do Governo e outras que não recebem nada. Algumas são prostitutas ou então aceitaram casar com um cunhado ou celebrar um contrato de casamento temporário (tradição xiita) que pode durar horas ou meses com os homens que controlam a distribuição dos fundos de ajuda. O Iraque é um país de muitas viúvas e pouco Estado e a sorte de algumas viúvas são mulheres como Fatimah.

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