Grace Kelly - Já não se fazem ícones como ela

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Grace Kelly nunca mais voltou ao cinema depois de se casar com Rainier, que proibiu a exibição dos seus filmes no Mónaco DR

Uma exposição no Victoria & Albert Museum de Londres serve de pretexto para analisar a anatomia do style icon loiro, elegante e paradoxalmente acessível e distante. De Hitchcock a Dior, foi vestida e vestiu uma geração de imitadoras. Hoje não tem sucessoras — só candidatas. Do restolhar destes vestidos, seis décadas nos contemplam.

Como se enfia o mundo num vestido? Assim: o vestido é bonitinho, elegante, simples e cintado. Tamanho 38, pertencente a Grace Kelly, feito por Oleg Cassini, seu ex-namorado costureiro que viria a vestir também Jacqueline Kennedy. Nesse vestido imaginário cingem-se ao corpo as décadas 1950 e 1960, a do new look pós-II Guerra e a do advento da música pop e da cultura juvenil, a de um ícone loiro e a de outro, moreno. Mas há mais vestidos. Outro, bem real, verde-esmeralda, feito pela Givenchy: eis Grace Kelly de verde e Jackie antes de ser O, juntas em 1961 na Casa Branca. Enchemos, finalmente, com mais planeta e uns tamanhitos acima, um derradeiro vestido: roxo, com laço, Yves Saint-Laurent sobre Grace Kelly princesa junto a Diana princesinha, em 1981. Europa e América, sonho e realidade. Passado e futuro.

A cena passou-se cerca de um ano antes da morte da predecessora de Diana nestas coisas das plebeias tornadas princesas, das loiras tornadas ícones de estilo. Um acidente de viação, como aquele que viria a reclamar a vida de Diana de Gales em 1997, punha fim a uma influência já em perda de Grace Kelly, então princesa Grace, mãe de três crianças acarinhadas pela imprensa rosa e ex-estrela de Hollywood. Em perda porque, apesar do postulado de Karl Lagerfeld — o kaiser criativo da Chanel que diz que se Grace Kelly fosse viva continuaria a arrasar, como nos lembra Paulo Morais-Alexandre, docente da Escola Superior de Teatro e Cinema —, Grace já não ditava todas as tendências. Na década de 1960 criticava as mini-saias (odiava mostrar os joelhos, que, dizia, ninguém tinha bonitos), nos anos 1970 retraía-se nos comentários às colecções parisienses e nos anos 1980 abraçou o exagero típico da década, ao mesmo tempo que mantinha algumas das suas peças fetiche (os lenços, chapéus e toucados) mas na suas mais feéricas versões.

É que Grace Kelly é um produto dos anos 1950. Através dela, e da roupa dela, podemos ver um mundo em mutação. Os seus 11 filmes foram feitos num tempo recorde de seis anos, com três Hitchcock e um John Ford pelo meio e uma catapulta para o estrelato mundial que em 1956 culminava com o casamento com Rainier do Mónaco. A sua educação numa família abastada e católica de Filadélfia fê-la à medida para o teatro (fora a voz, tida como muito estridente), depois para a televisão e cinema, finalmente para a realeza — ela que, quando menina, tinha dito que o seu sonho era ser princesa; mais tarde, queria ser actriz, séria, o que só se podia ser no teatro.

De permeio houve o trabalho como modelo, qual Carla Bruni a treinar para o cargo de primeira-dama, que depois foi artista da canção e finalmente sra. Sarkozy. Mas dizíamos que Kelly estava feita à medida para esse mundo 50’s, das saias rodadas com muito tecido, a luz do pós-II Guerra, a era new look de Christian Dior, para a qual ela levou as suas inconfundíveis luvas brancas e postura elegante.

“Quando Dior lançou o new look”, era “um apelo ao consumo” e “com essa loucura ele fez reanimar as indústrias têxteis. Parte-se para uma época diferente”, diz Paulo Morais-Alexandre. “Sob a aparente futilidade, gera-se optimismo: os anos 1950 são profundamente optimistas e Kelly simboliza isso mesmo.” Kelly é quase global, imitada nas compras pelas citadinas norte-americanas e pelas londrinas. É o caso de Barbara Hulanicki, a criadora que viria a fundar a influente boutique dos 60’s Biba, cadinho de modas e correntes artísticas, e de outras mulheres ouvidas por Jenny Lister, comissária da exposição Grace Kelly: Style Icon do Victoria & Albert Museum de Londres, para o livro que acompanha a mostra. Era a década, talvez a última, em que as estrelas eram as do cinema. Essa “importância do cinema nos anos 1950, que nos anos 1960 se perde para as rock stars e nos 1980 para as supermodelos”, recorda o docente de Dramaturgia do Vestuário e Psico-sociologia da Moda, fez com que na década “os grandes ícones fossem os que eram vistos no cinema, de Brigitte Bardot às italianas”.

E porquê ela e não, por exemplo, Marilyn? “Há qualquer coisa na vida de Grace Kelly que trespassou a ideia de como ela se apresentava perante a imaginação popular. Muito disso prende-se com as imagens de Hollywood e as revistas que mostravam a roupa dela no ecrã e fora dele. É esse ângulo mediático, e também a forma como compunha os seus trajes, que eram muito simples, não eram bizarros nem inovadores. Eram coisas que todos podiam copiar, como pequenas camisolas e os twin-sets [os da marca britânica Pringle tornaram-se numa referência por causa dela]. Por isso é que as pessoas emulavam o seu look nos anos 1950 e é algo que remete para a ideia de clássicos e de peças de investimento”, explica Jenny Lister, muito grávida, no local da exposição repleto de senhoras compostas e jovens estudantes de artes a visitar a mostra.

Ela podia ser considerada uma rainha dos básicos, uma figura de proa das listas de “dez peças que tem de ter no seu roupeiro”. Era simples e, ao mesmo tempo, “a mais bela actriz da era de ouro de Hollywood”, como escrevia um entusiasmado Independent, a tal rainha de gelo, a loira gélida — “Remota como uma rainha de neve”, descrevia a Vogue; “Vulcão coberto de neve”, dizia Hitchcock; “A rapariga das luvas brancas”, escrevia a Time na capa que lhe dedicou em 1956. De um lado tinha a sofisticação e elegância de uma rainha, a pele virginal nevada. E era também uma mulher normal, uma açambarcadora que nada deitava fora e que usava os mesmos vestidos e jóias em público repetidas vezes, sem as vergonhas das starletts de hoje quando são apanhadas com a mesma peça duas vezes pelos paparazzi ou na passadeira vermelha.

Inatingível mas pragmática

Era míope e foi capa da Paris Match grávida, de lilás e com os seus óculos fundos. Para o seu encontro com o então desconhecido príncipe Rainier, depois de uma falha de electricidade que não lhe permitia passar a ferro os vestidos trazidos a Cannes em 1955, onde se veriam pela primeira vez, usou um vestido florido com o qual tinha posado para a capa de uma marca de moldes de papel para fabrico caseiro de roupa. Grace Kelly era inatingível como uma estrela de cinema mas pragmática como uma rapariga de classe média de Filadélfia e por isso era adorada. Uma capa da revista Screen Stars, de Maio de 1955, dá-lhe o destaque maior: “A rapariga mais falada de Hollywood”; na mesma capa, uma chamada para um texto sobre Marilyn Monroe, a blond bombshell por excelência: “Franca! Reveladora! A Vida Privada de Marilyn Monroe.” Esta era a diferença entre ambas.

O vestido do molde e outros estão no V&A, protegidos pelas vitrinas e escrutinadas por milhares de pessoas. Estão lá porque Kelly era assim, uma hoarder, uma coleccionadora impulsiva de recordações, desde os vestidos de menina às peças americanas levadas para o Mónaco. Na tarde de Junho que a Pública visitou a exposição, as entradas, pagas e por marcação, estavam já esgotadas. Tem sido assim, embora haja um decréscimo agora, mas uma expectativa de que os turistas a façam esgotar novamente durante o Verão. A mais bem sucedida exposição recente do museu foi The Golden Age of Couture, com cerca de 200 mil visitantes, e a comissária não espera que esta ultrapasse esse sucesso, mas que se aproxime do número redondo.

O espaço circular dedicado a Grace Kelly no centro da exposição de moda e têxtil do V&A complementa a exposição permanente. E existe muito graças à pesquisa de mais de um ano de Jenny Lister, que conseguiu mostrar pela primeira vez alguns vestidos, como o negro de Janela Indiscreta (1954) que estava numa colecção particular de Los Angeles, e à cedência por parte do principado do Mónaco de muitas das peças. Mesmo assim perderam-se muitos figurinos — restam bastantes peças do filme Alta Sociedade (1956) porque o estúdio MGM ofereceu o guarda-roupa à sua actriz de partida para o Mónaco. Já o vestido de casamento de igreja no principado é demasiado frágil para viajar, conta-nos Lister, mantendo-se no Mónaco, mas o do casamento civil está lá.

Actriz, Noiva, Princesa, Ícone Duradouro. Estas são as secções da exposição, complementadas por filmes, newsreels da época e cartazes. Fotografias em que usa algumas das peças pretendem transformar a exposição em algo mais do que uma colecção de vestidos, especialmente para o público geral que não frequenta exposições de moda. O objectivo de Grace Kelly Style Icon é “mostrar como o estilo mudou e pôr em contexto a colecção do museu em geral. Tem sido óptimo porque pessoas que normalmente não vêm a exposições de moda têm vindo porque é Grace Kelly”, explica Lister. É mais fácil abordar uma exposição de moda através do foco de um ícone de estilo de Hollywood? “Torna-a muito mais acessível. A alta-costura é algo muito isolado e remoto que não é experienciado por muitas pessoas e quando podemos dizer que uma pessoa como Grace Kelly precisa mesmo de couture e que os criadores de alta-costura precisam de alguém como ela para promover as suas criações… É uma óptima forma de dar sentido a tudo isso.” E, ao mesmo tempo, de dar corpo à ideia de que o estilo mudou, de que há um motivo para que as saias tenham subido nos anos 1960 e as cores explodido nos anos 1970. De evidenciar que uma estrela era uma estrela naqueles anos e que hoje uma estrela é um “famoso” ou “celebridade”.

Mas porquê Kelly e porquê hoje? “A ideia de ícone de moda é tão usada — demasiado — na imprensa e escolhemos o título da exposição com muito cuidado, mas provou-se que ela é uma das poucas pessoas que merece o título”, avisa Jenny Lister. Na era da cultura de celebridades levada ao extremo, dos paparazzi e das estrelas instantâneas, da vigilância constante a cada passo e da intromissão corriqueira dos reality-shows, a moda e o estilo são associados à eterna busca pela imagem perfeita. Em termos de valores, não podíamos estar mais longe da Filadélfia ou do Mónaco de Grace. A moda desdobrou-se em milhentas declinações, dos stylists aos wardrobe advisors, passando pelos personal shoppers, closet makeovers, assistentes, relações públicas, agentes responsáveis pela imagem de milhares de homens e mulheres por todo o mundo. A fast fashion de usar esta estação e deitar fora na próxima é a antítese da praxis de Grace Kelly. Exemplo: o casaco azul de Ben Zuckerman que usou para chegar ao Mónaco, à vista na exposição. Usou-o dez anos depois, em plenos anos 1960.

Simplicidade calculada

Tanto Paulo Morais-Alexandre quanto Jenny Lister, a países de distância, insistem que talvez hoje, neste tempo de recessão, devamos olhar com optimismo para as capas que nos protegem da dura realidade. Lister formula mesmo um desejo: “Talvez isso possa mudar outra vez com a recessão e as pessoas talvez precisem de voltar a valorizar as suas roupas.” Mas Kelly, Grace Kelly, a profissional de moda de Janela Indiscreta, a mulher conspiradora de Chamada para a Morte (1954), a actriz secundária de Mogambo (1953), tem um fascínio que vai além do ecrã.

“As pessoas conhecem a ideia de Grace Kelly, mas penso que um dos motivos pelos quais ela se manteve tão popular é porque as pessoas não sabem assim tanto sobre ela. Morreu em 1982 e vemos muitas pessoas jovens aqui à descoberta de muito sobre a sua vida através das suas roupas”, comenta Lister. Era, de facto, uma outra era. “Grace Kelly só era fotografada em eventos muito especiais e não quando ia ao supermercado ou beber café com as amigas”, lembra Maria Guedes, com formação pelo IADE e pela Parsons – New School for Design de Nova Iorque, ilustradora e stylist, entre outras actividades fashion. Fomos poupados a “todas as cenas da sua vida quotidiana — ninguém consegue estar sempre impecável”, comenta, fazendo o contraste com as estrelas de hoje.

O ideal de Grace Kelly está por aí. Continuam a escrever-se livros sobre a sua imagem e estilo, outros sobre a sua relação com o seu realizador Alfred Hitchcock, muitos sobre a sua vida pessoal namoradeira mais ou menos branqueada (uns escrevem que era ninfomaníaca, outros que era quase santa). Na televisão, voltámos ao passado com Mad Men (em Portugal na Fox Next e RTP2), em que January Jones, loira e elegante, canaliza sem sombra para dúvidas (e com a confirmação da figurinista Janie Bryant) para a sua personagem Betty Draper uma Grace Kelly dos arrumados e asfixiantes subúrbios americanos do início dos anos 1960.

A série do canal AMC já inspirou uma colecção de Michael Kors e podem ver-se vestígios do look Kelly não só na Kelly bag da Hermés mas também nas propostas da Lanvin, de Zac Posen ou mesmo na história de vida e inspirações confessas de Tommy Hilfiger (tem a serigrafia de Grace feita por Warhol à cabeceira). O Guardian identifica uma campanha da Ferragamo com a atmosfera de Ladrão de Casaca (1955). Mas, tal como a imagem Kelly, é tudo muito etéreo e não se pode dizer que há um revivalismo ou um regresso em força do estilo 50’s que pôs, como na época, “a imagem stylish de Grace Kelly em todo o lado”, como escreve Kristina Haugland, curadora de moda e têxtil do Museu de Arte de Filadélfia, outra das autoras do livro Grace Kelly Style — Fashion for Hollywood’s Princess que acompanha a exposição.

“Quando alguém surge na passadeira vermelha com muito bom gosto e estilo senhoril, com uma elegância refreada, ainda é comparada a Grace Kelly”, diz Haugland ao New York Times. Lister complementa com exemplos: Gwyneth Paltrow, Kate Winslet. É o arquétipo da loira. Kelly, ela própria, corresponde a um arquétipo que vai além da cor do cabelo. A tal elegância e simplicidade resultava tão bem e perdura de tal forma que só pode ter sido pensada. “É a ingénua chique, é um arquétipo que se opõe às louras explosivas como Marilyn Monroe e às fatais como a Rita Hayworth e a Ava Gardner. Há uma igualzinha [na época], mas não tão chique: Audrey Hepburn”, pensa Paulo Morais Alexandre.

E a modelo, depois a actriz e mais tarde a noiva e a princesa trabalham essas imagens. Podia não haver personal stylists, mas havia costureiros amigos, figurinistas chegadas e realizadores estetas e controladores. São eles, juntamente com a própria loira de Filadélfia, que trabalham o ícone Kelly, cujos looks estavam nas montras de todas as lojas e grandes armazéns, cujo vestido de noiva inspirou gente de todo o Ocidente. “Ela é muito inteligente porque fez um trabalho dramatúrgico sobre si mesma. Há uma ligação entre o vestuário e o teatro, não só como figurino mas também como guião, ligado à pessoa. Quem a veste no casamento é uma figurinista [Helen Rose], que é a mesma que vestiu Audrey Hepburn no [filme] Férias em Roma (1953). Nada é inocente, ela quer uma dramaturgia do casamento”, garante o docente. E “é engraçado ver que a Lady Di vai fazer isto”, acrescenta, “na célebre entrevista televisiva em que se faz inocente — usa Ralph Lauren, com um ar Ivy League ‘benzoca’” — é a verdadeira herdeira do brilho Grace Kelly na opinião de Jenny Lister. Que, ainda assim, hesita — Kelly é única, dificilmente se fabricará outra assim, tão transversal e contida que quase chega a ser sensaborona. Talvez, surpreende-nos Lister, Carrie Bradshaw, a personagem de Candace Bushnell interpretada por Sarah Jessica Parker em Sexo e a Cidade seja outro ícone actual que resista, no futuro, à passagem do tempo.

“Hoje os ícones são outros. Lady Gaga é a reencarnação do tipo Madonna, mas haverá provavelmente outra princesa ingénua a fazer capas” no futuro, estima Paulo Morais Alexandre. Maria Guedes evidencia o contraste entre o tipo Kelly, “perfeitinha, arranjadinha”, e o look trashy das mulheres mais perseguidas de hoje, de Sienna Miller a Kate Moss, passando pelas diminutas gémeas Olsen. Essas têm-se a si mesmas, às suas stylists e às suas marcas de roupa em nome próprio para criar uma imagem. Os artesãos de Kelly foram outros.

Em Janela Indiscreta, Alfred Hitchcock faz um dos seus únicos planos em câmara lenta, senão o único. O alvo: um beijo de Grace Kelly. Inicialmente, o realizador só confiava em si mesmo e nas ordens precisas sobre as texturas, as cores e as peças do guarda-roupa dos seus filmes. Depois, em Chamada para a Morte, o filme que era para ter sido de Ingrid Bergman, não tivesse ela fugido enlevada por Roberto Rosselinni, ela convenceu-o numa escolha. A partir daí, estabelecia-se o verdadeiro triunvirato: actriz, realizador fascinado pelas loiras e Edith Head, a figurinista da Paramount cujas palavras nos permitem insistir: a simplicidade era pensada com toda a complexidade. “Ela selecciona roupas, histórias e realizadores com a mesma certeza”, diz a mulher que não chegou a vestir a sua noiva (mas que desenhou o guarda-roupa de partida para o Mónaco), Edith Head.

“Ela percebia muito bem a linguagem das roupas e tendo trabalhado como modelo sabia como vestir-se correctamente para cada ocasião, sabia usar a sua altura e a sua pose para fazer as roupas parecer elegantes. Mas há a frase de Oleg Cassini sobre o facto de ela escolher roupas que não chamavam muito a atenção para que ela fosse notada. É algo muito subtil, mas tudo se resume à simplicidade e austeridade”, analisa Jenny Lister, rodeada de casais idosos que suspiram em torno das cores das roupas ou comentam como “ela era muito magra”. “Grace Kelly tinha aquele glamour de Hollywood”. Hoje, na idade do Flickr e do Gawker (um dos maiores sites de “caça à celebridade” com mapas para localizar onde foram vistas pela última vez e respectivas imagens) não há o mesmo sentido de “exclusivo” e de “inacessível”.

A imagem pública de Kelly é uma construção do trio. “É uma coisa a três, entre ele, Edith Head, que já tinha um estilo muito contido antes de começar a trabalhar com Grace Kelly, [e a actriz]. Foi um acidente feliz que os três se tenham juntado e, se virmos Ladrão de Casaca, que é basicamente uma desculpa para mostrar Grace Kelly com um aspecto espantoso, e Cary Grant, talvez o equivalente masculino de Grace Kelly, em figurinos cuidadosamente coordenados e cores que mostram como ela se destaca repetidamente em todas as cenas, está simplesmente luminosa. Ele [Hitchcock] sabia o que queria e sabia que elas lhe dariam o que queria”, conta-nos Jenny Lister.

Em Alta Sociedade ou Ladrão de Casaca, cujos figurinos desapareceram quase na totalidade porque os estúdios não tinham o hábito de os guardar, o estilo deusa, os drapeados, os vestidos trabalhados mas simultaneamente simples são tanto um testemunho da elegância da década, das propostas de nomes venerados como o de Madame Grés ou Jean Dessès, como um presságio de transição iminente. Kelly conhece Rainier no Festival de Cannes de 1955, o seu último filme, Alta Sociedade, é terminado em 1956 a tempo de ir noivar. Rainier viria a proibir a exibição dos filmes da sua mulher no principado, Hitchcock chegou a contar com ela para Marnie (1961), a MGM oferece-lhe Rose e o figurino na esperança de que o presente seja uma garantia de regresso, mas Grace Kelly deixaria definitivamente o estilo descontraído e semidesportivo dos EUA para rumar às compras na Hermés, Dior, Chanel, Balenciaga, para esconder a sua barriga de Carolina com uma mala que a Hermés baptizaria como Kelly bag e fazer a ponte entre a imagem americana saudável e a fotografia de palácio inalcançável.

À entrada da exposição, mãe e filha entregam os bilhetes. “Estou tão entusiasmada! Yay!”, guincha a rapariga de 20 e poucos anos. Sorrisos embevecidos assistem ao noticiário que passa em repeat junto à fase “actriz”. O vestido de seda multicolor tipo túnica, de seu nome La bayadére, de Marc Bohan para a Dior (1967), não chama tanta atenção quanto os vestidos que usou com Diana ou Jacqueline Kennedy. “Duas pessoas com estilo concorrentes”, acotovela um reformado britânico. “Se eu experimentasse um destes chapéus, ficava ridícula”, comenta uma adolescente para outra. “Mas são lindos”, suspira.

A exposição termina com dois fatos para festas de máscaras — dois Dior desenhados por Marc Bohan, um deles negro e renascentista, bordado a dourado. O outro uma túnica escarlate, com um detalhe em dourado a fazer de peitilho tribal e um complexo toucado feito de trancinhas e dourados. É imponente, feérico, indelével. A exposição termina em tom de festa, mas também com ironia. Afinal, já se diz que a vida é um baile de máscaras, que as roupas podem ser extensões de nós e da forma como queremos que nos percepcionem. Mas, para uma modelo tornada actriz tornada princesa, a ideia de uma mascarada é algo bem mais profundo.

Reportagem publicada na edição da revista Pública de 4 de Julho de 2010

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