Nuno Azevedo e a Casa da Música: "Somos a instituição cultural mais transparente em Portugal"

Foto
Nuno Azevedo Ricardo Castelo/nFACTOS

A Casa da Música celebrou no mês passado o 5.º aniversário do edifício projectado por Rem Koolhaas. Fê-lo em estado de graça, reconfortada pelo reconhecimento de uma programação e actividades que fizeram já passar pela Casa dez mil artistas, um milhão de espectadores e dois milhões de visitantes. Nuno Azevedo, o administrador delegado da fundação que a gere, diz ver assim reconhecida uma estratégia de programação que fez com que a instituição tivesse sido integrada na cidade do Porto mais cedo do que inicialmente tinha imaginado. Agora é tempo de apostar na internacionalização.

Disse já uma vez que o grande momento musical que viveu na Casa da Música foi o concerto com o brasileiro Tom Zé. Mantém?

Mantenho. E repeti-o recentemente. Quando me perguntam isso, o meu gosto pessoal predomina sobre tudo o resto...


Mas não seria de esperar que o administrador da Casa da Música tivesse um gosto pessoal mais na área erudita?

Não. O que se espera que o administrador delegado da Casa da Música tenha é a capacidade de garantir que a programação se faça com autonomia e com profissionalismo...


... e com ecletismo também.

Esta Casa foi feita para ser eclética. É o seu pilar principal. Uma estratégia de programação que pusesse de lado o ecletismo, ou que desse um enfoque exagerado a um género musical, não estaria a cumprir a sua missão.


Nestes cinco anos, o que é que foi alcançado que não estava previsto e o que é que falta fazer?

Surpreendeu-me ver como o serviço público que prestamos aqui foi apropriado pela cidade. Isso aconteceu mais cedo do que eu tinha previsto.


Como é que se avalia isso? Pelo número de pessoas que aqui vêm?

Por ocasião do 5.º aniversário, houve uma multiplicidade de pessoas que se pronunciaram sobre a Casa da Música...


Mas, curiosamente, o presidente da Câmara do Porto não foi tão elogioso. E ele, por definição, representa a cidade.

Aquilo que o presidente da câmara referiu na sessão pública do conselho de fundadores [no dia 29 de Março] pareceu-me vir ao encontro do que eu estava a dizer, sobre a surpresa da apropriação que chegou mais cedo do que se pensava. E testemunhos de muitas outras personalidades fizeram-me pensar também isso. Para mim, aquilo que o presidente da câmara disse na sessão pública é o que vale. E ele foi muito claro: disse que "a Casa da Música é um pólo dinamizador da competitividade da cidade, que tem um papel a desempenhar na coesão social através do seu serviço público e que já está em fase de cruzeiro".


Mas depois, em entrevista ao semanário Grande Porto, Rui Rio pôs ao mesmo nível a Casa da Música e a Red Bull Air Race. E acusou também a Casa de ter uma programação elitista...

O que sei é o que ele disse aqui. E isso parece-me ser o reflexo do que a cidade sente.


Está satisfeito com o desempenho da Câmara do Porto enquanto entidade fundadora?

Enquanto fundador, há a destacar o apoio financeiro [250 mil euros/ano], que, no geral, não é muito significativo, mas é-o no contexto do orçamento da Câmara do Porto para a Cultura. Rui Rio não só está empenhado em apoiar a Casa da Música, como sente que o trabalho que nós fazemos aqui, com o Serviço Educativo, pode vir ao encontro de uma das suas prioridades de coesão para a cidade.


Vivemos sob o fantasma da crise. A contribuição do Estado para a Casa da Música, e de acordo com o estipulado por lei, vem diminuindo anualmente. Tem, no entanto, reivindicado a actualização dessa verba de acordo com a inflação. Na actual conjuntura, acha que vai consegui-lo?

A sustentabilidade da Casa da Música não depende exclusivamente do Estado.


Qual é a percentagem da contribuição estatal?

Em 2005, a participação do Estado era de 90 por cento; em 2009 já só foi de 70 por cento, o que significa que a Casa da Música é gerida com 30 por cento de receitas próprias. O apoio do Estado tem diminuído, todos os anos, em 500 mil euros, e vai fixar-se, em 2011, em dez milhões.


A sustentabilidade financeira da Casa da Música depende de várias coisas muito importantes. Em primeiro lugar, temos de prestar um serviço público de excepção, missão que é definida pelo decreto-lei. Se a Casa da Música o fizer, não há volta a dar. Tem de se cumprir a lei.

Quem é que avalia se a Casa está ou não a cumprir essa missão?

Todos os anos, nós reportamos ao conselho de fundadores. E posso afirmar - e não serei nem o primeiro nem o segundo a dizê-lo - que somos a instituição cultural em Portugal mais transparente na forma como reporta não só a sua actividade, como as suas contas.


A autonomia desta fundação é a de o conselho de fundadores definir, de três em três anos, a estratégia e as linhas de investimento para a prestação do serviço público. Se prestarmos um serviço público de qualidade, e se a lei for cumprida, a sustentabilidade financeira depende disso. Como depende do público que vier visitar a Casa, assistir aos seus concertos e participar nas suas actividades. E depende do interesse dos privados que nos apoiam de forma significativa também.

Mas, de facto, o último mês foi terrível na alteração do contexto em que é interpretado o resultado das finanças públicas. Por isso, não ficaria admirado se o financiamento da Casa da Música ficasse temporariamente congelado nos actuais dez milhões por ano.

Não admite uma redução.

Para além daquela que tem havido todos os anos, não.


O facto de a actual ministra da Cultura ser da área da música pode ser vantajoso para a Casa?

É sempre importante ver o envolvimento do Estado numa dupla perspectiva. [Por um lado] saber se quem está à frente do Ministério da Cultura compreende aquilo que estamos a fazer - e isso acontece com a sra. ministra, porque, sendo música, consegue perceber isso melhor do que se fosse doutro ramo, se fosse da política. A ministra enaltece a nossa estratégia e o serviço público que aqui prestamos. Por outro, depende também da capacidade de o Ministério da Cultura, no Conselho de Ministros, fazer ver que precisamos de mudar de paradigma, e que a cultura será um dos factores indispensáveis para a construção de um novo paradigma para Portugal.


A internacionalização da Casa da Música tem assentado até agora no Remix. A Orquestra Nacional do Porto (ONP) vai entrar também nessa aposta.

Quando olho para a nossa estratégia - que é ter uma casa singular, aberta, internacional e sustentável -, vejo que os últimos cinco anos foram muito interessantes para consolidar os dois primeiros objectivos: a Casa é uma instituição singular e aberta. Importa internacionalizar isto que nos é único.


A Casa, hoje, já é uma referência internacional na arquitectura. Se entrar numa livraria em Nova Iorque e consultar a secção de arquitectura, encontrará a Casa da Música como uma referência do trabalho vanguardista do Rem Koolhaas. Portanto, não vale a pena estarmos a investir aqui. Nós estamos verdadeiramente interessados é em internacionalizar a nossa criação artística. E essa capacidade já existe hoje, de várias maneiras: o Remix já faz parte do top três dos agrupamentos de música contemporânea na Europa. Já faz mais digressões internacionais do que concertos cá. E nós trabalharmos em rede em termos de co-produção de ópera. Nos últimos seis anos, fizemos sete óperas em rede com instituições europeias, e todas elas fizeram digressões. É também o caso das encomendas, que começámos a fazer já há dez anos. Desde aí tivemos 123 encomendas, a 73 compositores, 56 por cento dos quais são estrangeiros.

Nesta nossa ambição e desafio de tornar a Casa da Música uma referência da criação artística, há uma parte que já fez o seu caminho. Agora queremos que as demais formações - a até agora designada Orquestra Nacional do Porto e, a partir do dia 4 de Setembro, Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, a Orquestra Barroca Casa da Música e o Coro Casa da Música - passem também a fazer digressões internacionais. Para o triénio 2010-13 estamos a prever mais de 80 concertos fora de Portugal.

Mas sabemos que a mudança de nome da ONP não foi muito bem aceite pelos músicos...

Tive a oportunidade de falar duas vezes com todos os músicos sobre isto. Foi um processo muito participado. A questão da mudança de nome tem a ver com a estratégia de internacionalização. Todos os agrupamentos residentes têm vantagem em ter no seu nome Casa da Música, porque ela já é uma referência internacional. Estamos assim a reforçar a credibilidade dos grupos. E a própria Casa da Música ganha também com o facto de os seus agrupamentos residentes terem o seu nome. Por isso mudámos a ONP para Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. Ao retirarmos o "Nacional" não estamos a afunilar. Além de que ter a referência "Nacional" numa orquestra é quase terceiro-mundista, parece que só existe uma - a Orquestra Nacional do Burundi! O que era importante colocar no nome, do ponto de vista da afirmação internacional, é que se trata de uma orquestra sinfónica.


O marketing não está aquém da ambição anunciada pela fundação? Houve sucessivas figuras mediáticas que estiveram à frente deste pelouro e que não levaram o trabalho até ao fim. E a loja que foi instalada no hall é minimal e está escondida...

Para mim, mais importante do que o marketing ou o merchandising é a marca. E o resultado do trabalho feito nesta área nos últimos anos é que a Casa da Música é hoje uma marca da cultura.


Mas que não tem sido suficientemente explorada, do ponto de vista comercial.

Discordo quando diz que as coisas não correram bem. As coisas correram muito bem, nessa área. Se não tivessem corrido bem, eu não teria conversas em Lisboa, em Paris, em Londres, em que me é pedido que explique como é que conseguimos construir uma marca à volta de uma instituição cultural, em que essa marca valoriza o próprio produto cultural. Isso é uma realidade. Diz-me que a loja é minimal e escondida, mas teve um resultado líquido, no ano passado, de 60 mil euros e receitas de 100 mil euros.


Como avalia o trabalho aqui desempenhado por Guta Moura Guedes e Dalila Rodrigues?

A Guta Moura Guedes teve um papel importantíssimo, precisamente na construção da marca. Quer pela experiência que ela tinha quanto à comunicação de projectos culturais, quer em relação à forma como, em conjunto com o designer [austríaco] Stefan Sagmeister, trabalhou a identidade da Casa.


E a Dalila Rodrigues?

A Dalila não esteve cá o tempo suficiente para eu poder dizer que tenha corrido bem ou mal. Ela praticamente entrou e passados uns meses saiu.


Está a meio do seu mandato. Admite que o seu futuro possa continuar a passar pela Casa?

Não. Seis anos é o tempo ideal para um administrador delegado liderar um projecto como este. Há interesse em que haja renovação.


E se o convidarem para presidir à fundação?

O presidente não é convidado, é eleito pelos membros do conselho. Mas não faz muito sentido que alguém que liderou a instituição durante seis anos passe depois para uma função não executiva. Deve dar-se oportunidade à pessoa que vier a seguir de renovar e repensar à vontade. É benéfico que haja uma renovação. Tenho hoje um papel muito diferente do que tinha há cinco anos. Quando entrei, tive de lidar com uma realidade que me era completamente estranha. Tive que meter, como se diz, "as mãos na massa", e hoje sinto que tenho uma equipa perfeitamente identificada com a estratégia do conselho, capaz de reinventar todos os dias.


E se o convidassem para gerir uma Casa da Música, ou uma instituição do género, noutro país da Europa?

Vivi grande parte da minha vida no estrangeiro. Gosto de fazer experiências fora de Portugal e trabalhar nesta ou noutra área lá fora não é nada que me seja estranho...


Se se pusesse a possibilidade de voltar a trabalhar lá fora, mas agora na área da música... Qual é a instituição europeia que considera de referência nesta área?

Há uma que tem uma visão sobre o que deve ser uma instituição cultural, e os contributos que ela deve ter, que é o Southbank, em Londres, um pólo de música, teatro, literatura, que não tem par na Europa. E há outras instituições mais focadas na música, como a Cité de la Musique [Paris], ou o Concertgebouw, em Amesterdão. Mas nunca me passou pela cabeça ir para lá.


Tem ambições políticas para o Porto?

Nenhumas.


Admite voltar à gestão empresarial?

Dificilmente. De grandes empresas, 30 mil ou 60 mil pessoas espalhadas por cinco continentes? Não. Isso é história passada. O meu grande projecto agora é subir o Nilo e descer o Zambeze, para completar a minha travessia de África.


Sugerir correcção
Comentar