Castanhas assadas: o embrulho não conta

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Já lá vai o tempo em que se usava as folhas das Páginas Amarelas para comer uma dúzia de castanhas Sérgio Azenha (Arquivo)

Ana Maria e Anabela Ferreira acabam de comprar meia dúzia de castanhas e dois copos de jeropiga, aproveitando a ocasião de ser dia de São Martinho e de terem sido atraídas pelo cheiro do fumo do fogareiro em brasa, capaz de atiçar até o mais exigente paladar. Em plena Baixa de Lisboa, mãe e filha discutem alegremente sobre o pacotinho que têm na mão, mas o tema da conversa não é o cheiro, a cor ou o sabor do fruto seco, senão a imagem que agora envolve a mais típica iguaria da época.

Pelo segundo ano consecutivo a empresa Páginas Amarelas S.A. lançou uma campanha de embalagens para vender castanhas. Os novos pacotes têm as mesmas letrinhas e a mesma cor por fora, o que muda é o interior que agora é todo branco. O PÚBLICO foi dar uma espreitadela ao negócio que anuncia a chegada do Outono para ver o que as pessoas pensam sobre o que mudou e o que continua igual.

Ao início da tarde na rua Augusta não há sinal dos antigos cartuchos feitos de páginas das Páginas Amarelas (passe a redundância).

Maria da Assunção, mais conhecida como “São das Castanhas” usa papel branco para fazer os pacotes, “porque eles não deixam usar outra coisa”. “Eles” são a ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) que, por motivos de higiene, impôs a substituição dos antigos pacotes feitos de folhas do famoso livro amarelo, por causa das tintas tóxicas, potencialmente perigosas para a saúde.

De cabelo pintado em tons de louro, brincos de ouro e avental de lantejoulas, "São" não está muito preocupada com o embrulho das castanhas. “Pouco importa isso das embalagens”. Todos a conhecem e quase se ouve mais o seu nome a ser gritado pela rua do que o velho pregão “quentes e boas”, que este ano reveste os pacotes da campanha das Páginas Amarelas.

A vendedora anda “nesta vida há muitos anos, mais de 20”, explica. Começou por ser “hipe”, como diz, a vender artesanato, depois mudou para a fruta e só mais tarde para as castanhas e os gelados. Aos 50 anos, parece cansada e conta que o negócio está fraco: “há uns anos havia fila, agora é o que se vê”. Não culpa as embalagens, mas não gosta dos novos cartuchos. Aproveita para tirar um só para nos mostrar e dizer: “não são a mesma coisa”.

As novas embalagens têm a mesma marca, mas não são folhas arrancadas do livro, são pacotes feitos em exclusivo para as castanhas. Para “São” é só mais uma despesa: “além da licença para estar na rua, ainda tenho que comprar os pacotes”. Por cada resma de mil embalagens tem que pagar três euros. As folhas brancas que agora usa saíram-lhe de graça: “foi um colega que me as arranjou”.

"O importante é que sejam boas"

Mas nem para todos é indiferente o pacote das castanhas. Maria Luísa Cruz, 58 anos, já conhece a “São” há muitos anos, porque tem um atelier de arquitectura “ali ao lado”. Decidiu que “o dia de hoje merecia” e veio comprar meia dúzia.


A maneira como fala condiz com a roupa elegante que veste e as cores da maquilhagem que usa. E é em jeito de confissão, como se fosse proferir uma coisa menos bonita, que diz: “os outros pacotes podiam ser porcos, mas no fim tem sempre que se tirar a casca!”. Além disso, acrescenta: “usando o outro papel as castanhas ficavam quentes mais tempo”. Maria não chegou a ver os novos pacotes que “São” tem “escondidos”.

Um pouco mais à frente, na praça do Rossio, conseguimos encontrar finalmente quem tivesse aderido “ao novo design”.

Além das letrinhas do livro de endereços, as novas embalagens têm dois compartimentos: um para as castanhas e outro para as cascas.

Em torno do carrinho de Filipa Gaspar, cá em baixo, ao fundo da rua do Carmo, parece que a moda pegou porque a confusão é muita. Filipa tem 30 anos e anda há cinco a vender castanhas: “comecei com o meu marido que anda nisto desde que nasceu”. Mesmo com poucos anos de prática, a vendedora é muito desenrascada. Fala connosco e, ao mesmo tempo, dá instruções a três companheiras que a ajudam, vende três dúzias de castanhas e tira outras tantas do fogareiro, “antes que se queimem”, explica. Ao contrário de “São”, não tem problemas em comprar os pacotinhos novos das Páginas Amarelas e até diz que “são mais bem aceites pelas pessoas”.

Verdade ou não, quase ninguém repara na embalagem. Mesmo que com alguma resistência, quem compra castanhas faz questão de frisar que “o que interessa é que sejam boas!". Até Maria, depois de se queixar, acaba por dizer: “no fim de contas sabem ao mesmo”. Ideia partilhada por Clara Andrade, de 40 anos, que a caminho do trabalho e cheia de pressa ainda tem tempo para dizer, depois de pegar no pacote de castanhas, que “primeiro estranhou, mas agora já nem repara nisso”.

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