Três anos depois da guerra, o Afeganistão escolhe hoje um presidente

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O Presidente interino, Hamid Karzai, é o grande favorito, apesar do número elevado de candidatos Syed Jan Sabawoon/EPA

Batalhas em Kandahar, bombas a explodir no centro de Cabul, emboscadas em estradas desertas do Norte, mesas de voto vazias. Tudo isto faz parte dos cenários em cima da mesa para as eleições de hoje no Afeganistão. Algum nível de fraude, eleitores mal preparados, intimidações várias e falta de observadores são já um dado adquirido. Preparados ou não, milhões de afegãos vão hoje a votos. Fazem-no pela primeira vez em mais de 30 anos de guerras e para escolher o que nunca escolheram em 85 anos de independência - um Presidente por voto directo.

O Presidente interino, Hamid Karzai, é o grande favorito, apesar do número elevado de candidatos (dezasseis) e das boas perspectivas do seu ministro da Educação. Tajique, como 27 por cento da população (cerca de 42 por cento são pashtun, a etnia a que pertence o actual líder), Yunus Qanuni é um dos poucos, para além do Presidente, com reconhecimento nacional.

Independentemente do resultado, o mais importante destas eleições é serem possíveis. Falta que sejam legítimas. Karzai e as Nações Unidas, que supervisionaram todo o processo, falam num "grau suficiente de liberdade" e cruzam os dedos para que o dia decorra sem atentados e perturbações de maior.

"Esta eleição mostra uma tendência... um acelerar da transição da lei das armas para uma outra coisa qualquer", disse em Cabul Jean Arnault, o representante especial do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. "Esta outra coisa não é certamente a democracia perfeita. Mas é algo que leva as pessoas a uma situação política onde são chamadas a participar", continuou. A cultura da violência entre as facções que ficaram da ocupação soviética, as guerras civis e o regime taliban, mais a ameaça de extremistas islâmicos, colocam problemas, admitiu depois Arnault.

Em causa está o futuro do processo lançado com o derrube dos taliban. E está também a comunidade internacional, que garantiu não abandonar os afegãos antes da paz definitiva e arriscou avançar com o escrutínio. Para os EUA, as eleições são uma vitória da guerra contra o terrorismo. O Presidente George W. Bush e o seu vice, Dick Cheney, dizem-no em campanha.

Tensão permanente, segurança máxima

O maior medo é a segurança. O dia de ontem viveu-se em tensão permanente. Às portas de Kandahar, o antigo bastião taliban do Sul do país, foi descoberto um camião com 40 mil litros de essência de explosivos. Em Jalalabad, no Leste, um afegão e um paquistanês que se prepararam para entrar num autocarro com destino à capital foram presos com cintos de explosivos.


Do outro lado da fronteira, o exército paquistanês mobilizou reforços na linha que divide os países, para impedir infiltrações de militantes que procurem desestabilizar as eleições. Os taliban, hoje divididos em grupos extremistas que operam no Sul e Sueste e se abrigam nas províncias tribais do lado paquistanês, ameaçaram todos os que ousem votar.

Na capital, constantemente sobrevoada por helicópteros militares, as ruas estiveram desertas. Nenhum camião, táxi ou carroça tinha autorização para entrar na cidade e muitas ruas foram fechadas à circulação.

Os responsáveis eleitorais terão hoje nas mãos um mapa do país com diferentes graus de perigosidade. E em redor de cada um dos 4900 centros de voto será montado um dispositivo em "três círculos" - um confiado à polícia local, um ao exército nacional, e o último aos 18 mil soldados sob comando americano. Na capital estão ainda quase todos os nove mil soldados da Força Internacional de Segurança e Assistência, da NATO.

Medos e entusiasmos

O medo é também o das intimidações. De acordo com uma sondagem da Human Rights Reserch and Advocacy Consortium, um grupo que reúne 13 organizações não governamentais, 48 por cento pensa que vai votar sob pressão. E 88 por cento teme o poder das milícias acima de tudo.


Num país com a maior taxa de iliteracia do mundo, estimada pela UNICEF em 71 por cento, também se teme que as pessoas não estejam prontas. Houve educação eleitoral mas não chegou a todos nem durou o suficiente. E faltam observadores internacionais. Os pouco mais de 200 vão apenas observar, mas não se consideram preparados para legitimar ou não o escrutínio.

Os números do recenseamento (mais de dez milhões de inscritos) foram recebidos com entusiasmo pela ONU. Organizações como a Human Rights Watch interpretaram-nos com preocupação - as estimativas apontavam para cinco a sete milhões e o voto múltiplo é uma certeza.

De acordo com as estatísticas nacionais, 41.5 por cento dos recenseados são mulheres, outro dado aplaudido. Mas nas zonas do Sul pashtun o número não ultrapassa os 20 por cento. E de acordo com os relatos de jornalistas que têm percorrido o país, muitas mulheres poderão não chegar a votar. "Ninguém quer ser o primeiro a levar a sua mulher a votar", disse à "Newsweek" Haji Jan, chefe tribal de Paktia (Sul). "Ficaria surpreendida se 5 por cento das mulheres registadas votassem", afirma Raisa, uma médica do hospital da cidade.

Apesar dos medos, os afegãos entusiasmaram-se com as eleições, as primeiras para a grande maioria. Importantes, são só um primeiro passo. Para Abril estão previstas as parlamentares, mas com tudo o que ficou por fazer até às presidenciais, muitos analistas apostam que a primeira decisão do próximo Presidente será anunciar o seu adiamento.

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